quinta-feira, 28 de julho de 2011

MOMENTOS 33


27 de Julho de 2011


Despertei do sonho que me invadiu esta noite.

Rodeado por este azul deslumbrante, sigo pelo caminho das pedras para lá das paredes do mosteiro até onde a vista deixa de o alcançar.

Escuto os acordes da sinfonia das plantas, eles são as memórias do tempo que aqui veio repousar. Escuto as marés longínquas, os pinheiros a crescer e os regatos a fluir.

Recordo os sons do sonho e as cores com que se vestia, a luminosidade dos teus passos e a surpresa por nele teres aparecido. O teu sorriso e perfume invadiram a estrada por onde seguia. Voltei para trás para tentar recolher a pequena lembrança de infância que tinha desaparecido e com a qual jogava. Receei tê-la perdido para sempre e corri para a resgatar. Quando me coloquei de joelhos para a apanhar estavas junto a mim. Lembro-me que um vulto caminhava na minha direcção como uma miragem. Foi só depois de ter recolhido o brinquedo e de o ter seguro na minha mão que percebi que eras tu que me tinhas vindo visitar. O sonho ficou alegre e perfumado. Levantei-me para podermos conversar mas a luz intensa da manhã trouxe-me de volta a esta viagem ficando a conversa adiada

Acordei a escutar as preces dos peregrinos, como um sinal, e as ruidosas mensagens sonoras que dão conta dos acidentes, das vítimas que caem aos pés dos poderosos, dos enfermos e dos cegos, dos esfomeados, dos sedentos, dos arruinados e de todos aqueles por quem os sinos dobram.

No caminho já percorrido falta encontrar a história que possa explicar a primeira delas todas. Existem histórias perdidas no coração das pedras que se dedicam exclusivamente a tentar explicar os significados das outras histórias. Foram bordadas como histórias dentro das histórias tal como esta que me vai sendo contada.

O caminho é agora outro.

As pedras cresceram, algumas transformaram-se nestas montanhas sob o peso tremendo dos segredos que assim as construíram.

No sonho tudo se parecia com os caminhos que encontrei ao viajar como peregrino. Foi breve o encontro, breve o passeio, forte a sensação, os perfumes, as tonalidades luminosas que encheram de alegria o início deste dia.

Percebi que é tempo de regressar.

Este é o tempo de regressar, percorrer todo o percurso de volata ao Ganges, visitar novamente Allahabad no dia do Ardh Kumbh Mela e relembrar momento a momento, relembrar todos os instantes desde o primeiro poema, a primeira palavra, a primeira letra escolhida para dar início à viagem.

O tempo não parou. Este sonho teve o condão de retirar o poder da marca azul e de me iluminar o início deste dia. Nesse instante, nesse momento, o tempo voltou a viajar e eu com ele, e tu comigo, e todos os outros a quem pertence esta viagem.

As portas não param de bater e as janelas que se encontravam fechadas foram subitamente abertas entrando a ar e todos os sons para a grande sala do palácio.

As orações e as preces de mais de duzentos monges serenam a vida deste reino. Meditam tal como o tempo que resolveu acordar.

Este é o momento que o tempo medita.

Eu sou o Tempo e guardo em mim a memória de todas as histórias, mesmo a primeira. Antes das primeiras lamas me terem criado, existiu uma minúscula partícula de sonho onde a neblina moldou o espaço que tudo protege com a consistência de todas as outras coisas. Porque sou o Tempo sou infinito e infinitamente minúsculo. Nessa sublime insignificância estão contidas todas as histórias que alguma vez se contaram e já se adivinham todas as outras que ainda estão por acontecer.

O perfume contido nessa pequenez, conjugado com o sabor ímpar do teu sorriso, transformou-me novamente em rapaz-pássaro e as minhas asas voltaram a crescer.

Sou uma parcela desse Tempo onde tudo existe em forma de rapaz-pássaro. Um rapaz que foi o rio, a neblina, o firmamento e a luz, foi os segredos da montanha-mãe, foi história das pedras da lagoa de Gomukh, foi a lagoa, foi a árvore na floresta do Butão, o lobo e apresa, o meio-irmão de Arjuna, foi o escriba e o penitente, foi o peregrino e foi aquele por quem todos os peregrinos se fazem ao caminho. Sou uma minúscula parcela desse Tempo e sou como o vazio que segura as galáxias, as estrelas, os planetas, os cometas e todos os meteoritos. Esses meteoritos foram cobertos por uma nova luz azul que os circunda nascida na nossa morada lunar das pétalas de suas flores.

Neste imenso palácio do reino do Butão venho depositar parte destas pedras.

Vou correr na direcção do início da história. Foi-me dito que partes importantes das respostas continuam arquivadas nesse passado longínquo, nesse tempo em que as pernas pareciam não fazer parte do meu corpo franzino, esse corpo que mal se distinguia da patine que fermentava os restos da cidade onde vivi.

Voltaste para junto de mim.

Vejo o teu corpo mas não te posso tocar.

Vejo-te entretida a construir ciclones uns atrás de outros, esse teu jogo predilecto que faz crescer o Universo com galáxias deslumbrantes.

Sorris.

- Não tenhas medo de recomeçar. Quando regressares saberás onde encontrar-me mesmo que todas as lembranças te sejam retiradas. Vais voltar a ver-me pela primeira vez. Vais ver-me como sombra, como uma miragem que te surgirá desconhecida tal e qual esse teu sonho de hoje. Vais passar por momentos de extrema aflição e angústia. Sentir-te-ás o mais miserável e solitário dos seres. Tentarás encontrar respostas para as perguntas que irão despertar no teu coração. Questionarás os porquês da existência, das virtudes e dos defeitos, das maldições que te condenaram a essa vida, das famílias que sendo tuas desconheces, do sentido oculto de todas as coisas, da forma das coisas, dos sabores, dos cheiros e das suas tonalidades. Desejarás obter o impossível até que este vá ter contigo em forma de marca azul, de sagrada marca azul que te oferecerei. Não posso viver sem ti, não podemos viver um sem o outro pois as nossas existências acabam sempre por se reencontrar vezes e vezes e vezes sem conta, sem nunca nos repetirmos, nunca iguais mas sempre um para o outro. É assim que desenho os ciclones, as galáxias e me divirto. É assim que gostas e me alegras e me amas como eu a ti. No coração das pedras continuam perdidas todas as histórias. A tua missão será a de descobrires onde estão guardadas as histórias que explicam a tua pois ela é parte importante de todas as outras, até da primeira. Agora vai! Segue de novo o caminho que te levará a Allahabad. Vai ser de novo quem tu foste sabendo que para isso terás de voltar a acordar.

Despertei do sonho que me invadiu esta noite.

Despertei deste outro sonho dentro do sonho que me invadiu esta noite e meditei.

- Aqui, no centro da capital do reino, neste templo sagrado construído no interior do palácio real, medito. Retirei sumos estranhos do interior das pedras. As águas do Ganges onde renasci fizeram parte de mim e eu fui essas águas. Encontrei-te quando recuperei as forças para vencer o infortúnio, quando as pernas, os joelhos e todas as partes do meu corpo passaram a pertencer-me. Cresceram-me asas brancas, imensas, nesse meu dorso azul. Voei dias e dias sem parar. Planei por desertos, planícies, vales, montanhas infinitas. Galguei as galáxias ao colo das novas amizades firmadas no fundo da lagoa de Gomukh onde nasci. Fui peregrino e senti o que sentem todos o peregrinos, os vencedores e os que são derrotados pelo poder da montanha-mãe. Bebi de todos os sumos e provei de todos os néctares. Conheci-te sem nunca te ter esquecido pois vivemos eternamente na nossa morada lunar. Fui a lua e fui a sombra do seu lado escondido. Fui as recordações do tempo das lamas quando tudo foi criado e regressei ao templo onde o tempo vem para descansar. Aqui é o lugar onde esse peregrino improvável medita.

Eu e o Tempo aguardamos pelo sinal que sairá das campainhas sagradas. Aguardamos a musicalidade da oração dos monges e a sabedoria contida nas suas palavras.

Este é o reino de todos os silêncios, o reino onde se vieram depositar as histórias construídas a partir da primeira e até partes da primeira.

Aqui continuam a chegar bandos de grous carregando as suas palavras.


Sigo o caminho das pedras

Das memórias do Tempo que aqui vem repousar

Recordo os ruídos do sonho

E nele o teu perfume

O teu sorriso


Escuto as preces dos peregrinos

Como um sinal

Bordado como as histórias

Dentro de outras histórias

E questiono os porquês da existência


O Tempo não parou

Voltou a viajar

Até ao momento em que foi criado

Pelas primeiras lamas

Infinito

Minúsculo

Perfumado


O tempo corre na direcção do início

Onde vejo o teu corpo

Mas não te posso tocar

Até que descubra onde estão guardadas todas as histórias


Terei de regressar a Allahabad

Despertar deste sonho

E do sonho dentro deste sonho

Retirar o sumo do interior das pedras

Deixar de ser a sombra do lado escondido da lua

Continuar a descobrir esta história


E partes da primeira

.

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