19 de Julho de 2011
Necessito de vos dizer como tudo começa pois as histórias, todas as histórias, contêm uma certa magia no seu início.
De um peixe nasceu, certo dia, a mais bela das princesas que cheirava aos cheiros de todos os nascimentos.
Um eremita ao vê-la assim tão bela, desejou possuí-la. No seio do mais denso e perfumado dos nevoeiros a engravidou dando-lhe um filho, aquele a quem a primeira de todas as histórias foi contada pelas pedras.
Vyasa, filho da névoa, assim nasceu, numa terra sem guerras nem fomes nem misérias e onde homens e deuses viviam lado a lado.
Bhishma, o príncipe perfeito, aquele que nunca poderia ser rei por não poder conceber, irmão de Vyasa, aquele a quem contaram a primeira história. Bhishma, aquele que fez a jura da mais absoluta renúncia, aquele que os deuses enalteceram e a quem ofertaram a mantra que lhe facultará a escolha da hora da sua própria morte.
Bhishma conquistou três princesas em batalha, três mulheres que ofereceu como esposas ao irmão mais novo. Amba, a mais nova, chorando se aproximou de seu senhor dizendo que antes de Bhishma a ter ganho no torneio já o seu coração tinha escolhido um marido em segredo e que o seu amado o sabia e a amava. Ele é Salwa, o rei. Amba perguntou a Bhishma, virtuoso entre os virtuosos, qual a razão porque a deseja casar com o seu meio-irmão, pois ele seguramente entende, como nenhum outro, que o seu coração pertence a outro homem que a aguarda.
Sendo verdade o que dizia, Amba foi libertada para que pudesse ir ter com o seu rei e senhor, mas este a rejeitou pois ela tinha sido o prémio de outro que não ele. Amba disse a Salwa que se encontrava pura e intocada e que por nenhum outro homem fora alguma vez desejada, que era virgem e que seus olhos apenas Salwa conhecem. Mas o rei disse recear Bhishma e que Amba devia regressar pois para si era como se ela já não existisse.
O meio-irmão de Bhishma casou com as outras duas princesas tendo falecido na sua noite de núpcias não tendo havido descendência. Mas se não nascem crianças a história acaba sem ter sequer tido um início.
Vyasa, o que foi criado no meio da neblina, dotado de invisibilidade, foi ter com a mais velha das princesas que não o podia olhar de frente, e lhe disse que iria nascer Dhritharashtra e que este nasceria sem visão.
Vyasa, o que foi criado no meio da neblina, foi ter com a segunda princesa e lhe disse que iria nascer um filho branco como o leite e que se conhecerá como Pandu, o pálido.
E a terceira e mais nova das princesas pediu auxílio a Bhishma, que a salvasse pois ela fora rejeitada pelo homem que ama. Bhishma tinha sido o causador de todo o seu sofrimento, e se a ganhou em combate que a desposasse, mas Bhishma recordou-lhe que tal não era possível pois mulher alguma, nem mesmo Amba, pode fazer parte da sua vida. Se Salwa a rejeitou, Alba está livre para regressar para junto do pai. Mas o pai de Amba é severo e maltrata-a como não se maltratam os animais, e ela propôs caminhar sempre em frente, de vestes rasgadas como penitente, vivendo apenas com um pensamento, como se esse pensamento fosse dádiva e a ajudasse a encontrar alguém que combata Bhishma até que este morra. Sendo Bhishma invencível, Amba fez um voto para que nenhuma mulher neste Mundo possa pensar em outra coisa que não seja a morte de Bhisma.
Pandu, o pálido foi coroado rei pois seu irmão Dhritharashtra era cego e não podia ser rei.
Kunti, aquela que, sem saber, carrega em seu útero toda a fé do Mundo, e a criação que dela nascer será grandiosa e sem ela não estaríamos aqui. Kunti olha o Sol, o seu segredo, casa com o rei Pandu que também desposa Madri.
Numa das inocentes caçadas do rei Pandu se traçou o destino do Mundo. O rei acerta em duas gazelas que eram dois amantes disfarçados e que assim se encontravam para expressar o seu amor. Os dois amantes lançaram uma maldição sobre o rei não podendo este nunca ter em seus braços as esposas pois seguramente morreria.
Pandu fugiu para as montanhas sem deixar traço e Dhritharashtra tomou o lugar do irmão. Madri e Kunti perguntaram-lhe o que iria ser delas e Pandu lhes respondeu que nada tinham para lhes oferecer a não ser pobreza e virtude até á morte. Os três abandonaram o palácio em direcção às montanhas, andaram por muitos dias até que alcançaram as profundezas dos Himalaias, o tecto do Mundo. Aqui fizeram a sua morada mas a sombra da maldição das gazelas escureceu para sempre as suas vidas. Se alguma vez Pandu procurasse fazer amor com Madri ou Kunti a morte o visitaria e perante esta evidência aceitou o inevitável pois isto, pensou ele, era o seu destino.
Mas Kunti carregava no seu coração um antigo segredo. Quando nova um eremita ofertara-lhe um mantra pelos bons serviços prestados. Com esse mantra Kunti podia invocar qualquer dos deuses à sua escolha. E Kunti invocou o deus Sol que foi seu amante e lhe deu um filho mantendo-a virgem. Abandonando todos os seus receios, Kunti caiu nos braços do Sol e instantaneamente tiveram um filho Sol esplendoroso e radiante. Kunti permaneceu receosa e escondeu a sua falha, o seu segredo. Colocou o filho recém-nascido numa cesta e o abandonou à mercê da corrente do grande rio. Um condutor o avistou e o resgatou da morte certa.
Karna, filho de Kunti e do deus Sol. Criança magnífica, cresceu como homem hábil e inspirado mas que no coração mantinha guardada uma sombra amarga pois não sabia quem era.
Tal como o rapaz-pássaro das lixeiras de Allahabad, Karna terá de procurar nas viagens e no conhecimento de todas as histórias qual a que lhe permitirá obter a resposta tão aguardada. Talvez Karna seja irmão de Larniki pois tal como o rapaz-pássaro ele não sabe quem é.
E Kunti revelou o seu mantra a Pandu e como lhe deu uso e como estava certa que o deus Sol a fecundou e lhe deu um filho.
E Pandu pediu-lhe que invocasse Dharma pois perante ele todos os pensamentos se curvam.
- Este é Yudhishthira, o nosso primogénito, filho de Dharma, nascido para ser rei.
E Pandu pediu-lhe outro filho e que invocasse Vayu, deus do Vento, e Kunti assim fez.
- Este é Bhima, filho do vento, forte como o Trovão.
E Kunti invocou Indra, o rei dos deuses.
- Este é Arjuna, o guerreiro perfeito nascido para conquistar.
E Madri pediu a Kunti que esta lhe cedesse o poder da mantra para também gerar um filho e Kunti assim fez, invocando os Aswins, gémeos de olhos dourados.
- Estes são os nossos dois filhos, Nakula e Sahadeva, inseparáveis como a paciência e a sabedoria.
Pandu rejubilou pelos seus cinco filhos descendentes dos deuses.
Eles são Pandava, os cinco filhos de Pandu. Eles são o coração da história primeira, desse poema, e nunca nos deixarão.
Terá Larniki, o rapaz-pássaro, o mesmo sangue dos Pandava?
Será Larniki, o rapaz-pássaro, descendência dos próprios deuses?
Isto é aquilo que a história pretende contar, esta e todas as outras, até a primeira.
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