quinta-feira, 28 de julho de 2011

MOMENTOS 33


27 de Julho de 2011


Despertei do sonho que me invadiu esta noite.

Rodeado por este azul deslumbrante, sigo pelo caminho das pedras para lá das paredes do mosteiro até onde a vista deixa de o alcançar.

Escuto os acordes da sinfonia das plantas, eles são as memórias do tempo que aqui veio repousar. Escuto as marés longínquas, os pinheiros a crescer e os regatos a fluir.

Recordo os sons do sonho e as cores com que se vestia, a luminosidade dos teus passos e a surpresa por nele teres aparecido. O teu sorriso e perfume invadiram a estrada por onde seguia. Voltei para trás para tentar recolher a pequena lembrança de infância que tinha desaparecido e com a qual jogava. Receei tê-la perdido para sempre e corri para a resgatar. Quando me coloquei de joelhos para a apanhar estavas junto a mim. Lembro-me que um vulto caminhava na minha direcção como uma miragem. Foi só depois de ter recolhido o brinquedo e de o ter seguro na minha mão que percebi que eras tu que me tinhas vindo visitar. O sonho ficou alegre e perfumado. Levantei-me para podermos conversar mas a luz intensa da manhã trouxe-me de volta a esta viagem ficando a conversa adiada

Acordei a escutar as preces dos peregrinos, como um sinal, e as ruidosas mensagens sonoras que dão conta dos acidentes, das vítimas que caem aos pés dos poderosos, dos enfermos e dos cegos, dos esfomeados, dos sedentos, dos arruinados e de todos aqueles por quem os sinos dobram.

No caminho já percorrido falta encontrar a história que possa explicar a primeira delas todas. Existem histórias perdidas no coração das pedras que se dedicam exclusivamente a tentar explicar os significados das outras histórias. Foram bordadas como histórias dentro das histórias tal como esta que me vai sendo contada.

O caminho é agora outro.

As pedras cresceram, algumas transformaram-se nestas montanhas sob o peso tremendo dos segredos que assim as construíram.

No sonho tudo se parecia com os caminhos que encontrei ao viajar como peregrino. Foi breve o encontro, breve o passeio, forte a sensação, os perfumes, as tonalidades luminosas que encheram de alegria o início deste dia.

Percebi que é tempo de regressar.

Este é o tempo de regressar, percorrer todo o percurso de volata ao Ganges, visitar novamente Allahabad no dia do Ardh Kumbh Mela e relembrar momento a momento, relembrar todos os instantes desde o primeiro poema, a primeira palavra, a primeira letra escolhida para dar início à viagem.

O tempo não parou. Este sonho teve o condão de retirar o poder da marca azul e de me iluminar o início deste dia. Nesse instante, nesse momento, o tempo voltou a viajar e eu com ele, e tu comigo, e todos os outros a quem pertence esta viagem.

As portas não param de bater e as janelas que se encontravam fechadas foram subitamente abertas entrando a ar e todos os sons para a grande sala do palácio.

As orações e as preces de mais de duzentos monges serenam a vida deste reino. Meditam tal como o tempo que resolveu acordar.

Este é o momento que o tempo medita.

Eu sou o Tempo e guardo em mim a memória de todas as histórias, mesmo a primeira. Antes das primeiras lamas me terem criado, existiu uma minúscula partícula de sonho onde a neblina moldou o espaço que tudo protege com a consistência de todas as outras coisas. Porque sou o Tempo sou infinito e infinitamente minúsculo. Nessa sublime insignificância estão contidas todas as histórias que alguma vez se contaram e já se adivinham todas as outras que ainda estão por acontecer.

O perfume contido nessa pequenez, conjugado com o sabor ímpar do teu sorriso, transformou-me novamente em rapaz-pássaro e as minhas asas voltaram a crescer.

Sou uma parcela desse Tempo onde tudo existe em forma de rapaz-pássaro. Um rapaz que foi o rio, a neblina, o firmamento e a luz, foi os segredos da montanha-mãe, foi história das pedras da lagoa de Gomukh, foi a lagoa, foi a árvore na floresta do Butão, o lobo e apresa, o meio-irmão de Arjuna, foi o escriba e o penitente, foi o peregrino e foi aquele por quem todos os peregrinos se fazem ao caminho. Sou uma minúscula parcela desse Tempo e sou como o vazio que segura as galáxias, as estrelas, os planetas, os cometas e todos os meteoritos. Esses meteoritos foram cobertos por uma nova luz azul que os circunda nascida na nossa morada lunar das pétalas de suas flores.

Neste imenso palácio do reino do Butão venho depositar parte destas pedras.

Vou correr na direcção do início da história. Foi-me dito que partes importantes das respostas continuam arquivadas nesse passado longínquo, nesse tempo em que as pernas pareciam não fazer parte do meu corpo franzino, esse corpo que mal se distinguia da patine que fermentava os restos da cidade onde vivi.

Voltaste para junto de mim.

Vejo o teu corpo mas não te posso tocar.

Vejo-te entretida a construir ciclones uns atrás de outros, esse teu jogo predilecto que faz crescer o Universo com galáxias deslumbrantes.

Sorris.

- Não tenhas medo de recomeçar. Quando regressares saberás onde encontrar-me mesmo que todas as lembranças te sejam retiradas. Vais voltar a ver-me pela primeira vez. Vais ver-me como sombra, como uma miragem que te surgirá desconhecida tal e qual esse teu sonho de hoje. Vais passar por momentos de extrema aflição e angústia. Sentir-te-ás o mais miserável e solitário dos seres. Tentarás encontrar respostas para as perguntas que irão despertar no teu coração. Questionarás os porquês da existência, das virtudes e dos defeitos, das maldições que te condenaram a essa vida, das famílias que sendo tuas desconheces, do sentido oculto de todas as coisas, da forma das coisas, dos sabores, dos cheiros e das suas tonalidades. Desejarás obter o impossível até que este vá ter contigo em forma de marca azul, de sagrada marca azul que te oferecerei. Não posso viver sem ti, não podemos viver um sem o outro pois as nossas existências acabam sempre por se reencontrar vezes e vezes e vezes sem conta, sem nunca nos repetirmos, nunca iguais mas sempre um para o outro. É assim que desenho os ciclones, as galáxias e me divirto. É assim que gostas e me alegras e me amas como eu a ti. No coração das pedras continuam perdidas todas as histórias. A tua missão será a de descobrires onde estão guardadas as histórias que explicam a tua pois ela é parte importante de todas as outras, até da primeira. Agora vai! Segue de novo o caminho que te levará a Allahabad. Vai ser de novo quem tu foste sabendo que para isso terás de voltar a acordar.

Despertei do sonho que me invadiu esta noite.

Despertei deste outro sonho dentro do sonho que me invadiu esta noite e meditei.

- Aqui, no centro da capital do reino, neste templo sagrado construído no interior do palácio real, medito. Retirei sumos estranhos do interior das pedras. As águas do Ganges onde renasci fizeram parte de mim e eu fui essas águas. Encontrei-te quando recuperei as forças para vencer o infortúnio, quando as pernas, os joelhos e todas as partes do meu corpo passaram a pertencer-me. Cresceram-me asas brancas, imensas, nesse meu dorso azul. Voei dias e dias sem parar. Planei por desertos, planícies, vales, montanhas infinitas. Galguei as galáxias ao colo das novas amizades firmadas no fundo da lagoa de Gomukh onde nasci. Fui peregrino e senti o que sentem todos o peregrinos, os vencedores e os que são derrotados pelo poder da montanha-mãe. Bebi de todos os sumos e provei de todos os néctares. Conheci-te sem nunca te ter esquecido pois vivemos eternamente na nossa morada lunar. Fui a lua e fui a sombra do seu lado escondido. Fui as recordações do tempo das lamas quando tudo foi criado e regressei ao templo onde o tempo vem para descansar. Aqui é o lugar onde esse peregrino improvável medita.

Eu e o Tempo aguardamos pelo sinal que sairá das campainhas sagradas. Aguardamos a musicalidade da oração dos monges e a sabedoria contida nas suas palavras.

Este é o reino de todos os silêncios, o reino onde se vieram depositar as histórias construídas a partir da primeira e até partes da primeira.

Aqui continuam a chegar bandos de grous carregando as suas palavras.


Sigo o caminho das pedras

Das memórias do Tempo que aqui vem repousar

Recordo os ruídos do sonho

E nele o teu perfume

O teu sorriso


Escuto as preces dos peregrinos

Como um sinal

Bordado como as histórias

Dentro de outras histórias

E questiono os porquês da existência


O Tempo não parou

Voltou a viajar

Até ao momento em que foi criado

Pelas primeiras lamas

Infinito

Minúsculo

Perfumado


O tempo corre na direcção do início

Onde vejo o teu corpo

Mas não te posso tocar

Até que descubra onde estão guardadas todas as histórias


Terei de regressar a Allahabad

Despertar deste sonho

E do sonho dentro deste sonho

Retirar o sumo do interior das pedras

Deixar de ser a sombra do lado escondido da lua

Continuar a descobrir esta história


E partes da primeira

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terça-feira, 26 de julho de 2011

MOMENTOS 32


26 de Julho de 2011


Os lobos atacaram as presas indefesas deixando as altas planícies manchadas para sempre com o vermelho do seu sangue.

Larniki encontrará o fim do caminho quando a lua descer, o sol pousar e a terra parar de rodar.

As montanhas prestam homenagem às histórias pois é aqui que os actores encontram refúgio nas jornadas, é aqui que vêm dar de beber à sede e alimentam as vozes que assim os moldaram.

Filho de Kunti e do deus sol, Karna cresceu sem saber quem era, sem sonhar que devia a sua existência aos deuses e que nele corria a seiva sagrada. Cresceu sem saber que combatia contra os seus meios-irmãos pois são amargas as sementes antigas que contêm todas as dádivas, são venenosas e destruidoras, são capazes de arrancar a eterna serenidade das montanhas.

Fechei os olhos e meditei.

Nas relações construídas entre irmãos, meios-irmãos, pais e filhos, entre cunhados, tios e sobrinhos, se foram conhecendo e crescendo as entranhas da maldade, dos ódios, da devoção, do amor, do desespero, do abandono, do vício, da dependência, da disciplina, do dever da renúncia e da mais sincera amizade. As histórias, tal como os actores, separam-se à nascença, como dois rios que nascem da mesma fonte e seguem caminhos separados. As águas são as mesmas, libertam-se do lugar encantado onde me encontro e em nada se distinguem. Percorrem os mesmos caminhos iniciais, de mãos dadas, mas cedo se esquecem dessa unidade ao separarem-se para seguir destinos opostos.

As pedras que sedimentaram os seus leitos são diferentes, as histórias que lhes contaram e ainda contam são diferentes, as paisagens que as vestem, os povos que neles habitam e as preces que são realizadas são diferentes. Mas são as histórias que dão a real dimensão da diferença entre os dois irmãos pois foram elas que os construíram de maneira tão diferente.

O rei Dhritharashtra renunciou à condição real pois entendeu que, como os rios e as montanhas, nem todos crescem para ser deuses.

As cordilheiras são as marcas divinas na paisagem e nada as consegue suplantar. O céu, acima delas, cobre-as, pinta a moldura que as embeleza mas muda consoante os seus humores.

Nos mosteiros do Butão o tempo parou.

Os sinos badalaram uma última vez antes que desse uso à marca azul que me ofereceste. Prefiro não saber que no início, como agora, é sobre o Poder que tudo se constrói. Aos diferentes tipos de Poder se verga o homem, se tem vergado e vergará pois acredita, como os rios que se separam após a nascente, que não nascem iguais.

Represento a vontade de mudança, como um rio de força. Rapidamente voltei a dar uso às asas oferecidas. Subi até aqui depois de anos e anos a caminhar como os verdadeiros peregrinos. Aqui medito e meditei acompanhado de parte das primeiras histórias e até da primeira.

Não sei quem sou, não descobri quem sou, não ainda, mas com Karna encontrei quem não tivesse resistido ao lado amargo das dúvidas, quem lutasse contra irmãos dominado pelas dores tremendas e solitárias que nos moldam crescimento e carácter. Ao parar o tempo o mundo pára, a solidão pertence-me. Necessito destas pausas para pensar em ti, pensar em nós, afastados da loucura nessa redoma sagrada que é a nossa morada lunar. O caminho até aqui foi longo mas ainda só vai no seu início. As luas continuarão a pintar as noites, os sóis a iluminar os dias, as monções a fazer crescer os rios sagrados, as neblinas a alimentar sangrentos desejos de vingança e o fogo continuará a cremar os corpos dos penitentes. As garças continuam a migrar, os falcões a caçar, os grous a transportar as histórias que se escondiam no coração das pedras até estes remotos lugares e os homens continuarão a procurar pelos primeiros contadores de histórias e onde é que estes se encontram.

Fazem-no porque não se conhecem e necessitam saber quem são.

Alguns são filhos de deuses, outros netos de deuses, outros são apenas contadores de histórias sem as quais os próprios deuses não existiriam, logo são também pais dos primeiros deuses e dos seus filhos primogénitos.

Entender a força que exerce o fascínio do Poder, não era o que aqui esperava vir encontrar nesta parte do mundo.

Os guerreiros combatem por motivos que nem os generais conseguem explicar. Os animais caçam para sobreviver, o homem luta, morre e mata em batalhas sangrentas para demonstrar o Poder da sua visão e dos seus deuses, luta por raiva, luta porque recorda as privações que os irmãos lhe causaram, luta por vingança ou pelo prazer de dar caça à sua própria existência. Luta por tudo, luta por nada, luta por não saber fazer mais nada.

Na lua fazemos amor, amamo-nos como se disso dependesse a existência de todas as coisas. Na lua somos um para o outro, meu amor, minha princesa do Ganges, e só assim pode esta história continuar. Se não pertencêssemos um ao outro já estaria morto e o meu corpo teria sido abandonado numa das margens do grande rio sagrado para onde fui arrastado pela multidão. A história teria ficado por contar, como tantas outras histórias. Deste-me a mão, deste-me força e um poder sagrado contido nesta mantra azul que nos pertence. Aqui na lua nascem todas as flores que nos alimentam. Assim ficamos azuis pois essa é a sua cor. Assim nos amamos em camas feitas de pétalas azuis, em colchões de pétalas azuis, em mantas brocadas com fios de pétalas azuis, como de pétalas são feitas as letras desta história resgatada ao coração das pedras da lagoa de Gomukh. As pétalas que nos cobrem pintam de azul o céu que adorna a terra e dá cor aos oceanos e a todas as águas que reflectem as pétalas da nossa morada lunar. A lua é azul, tão azul como as estrelas e o sol é a mais azul de todas elas. Os sonhos que temos são azuis e apagam todas as cores dos pesadelos, mesmo os que procuraram plantar nas vontades de nossos filhos. A neblina que os esconde é azul, impenetrável, de um azul tão escuro que tudo cobre e esconde.

O fundo da lagoa de Gomukh é azul e até as cores que, luminosas, cobriam as pedras voadoras que se encontram nos caminhos celestes que iam dar à tua outra casa já não são mais verdes, mas azuis. Este meu sonho é azul porque assim medito e nem os terrores que me causaram a história que aqui vim encontrar me apagaram a esperança pois pensei em ti.

Estávamos juntos na nossa morada lunar e acalmei.

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quarta-feira, 20 de julho de 2011

MOMENTOS 31


19 de Julho de 2011 (noite)


Era uma vez uma princesa do Norte chamada Ghandarhi que por muito tempo viajou até ao reino de Dhritharashtra, o rei cego. O seu casamento tinha sido arranjado e viveu em retiro até ao dia de seu casamento. A sua aia, que visitava a cidade, trazia-lhe as novidades e explicava-lhe todas as maravilhas que nela encontrava.

- Princesa, vi o seu futuro esposo, ele é forte e poderoso mas a minha senhora foi traída. Dhritharashtra é cego, assim nasceu.

E a princesa disse que tal é impossível pois nenhum rei o pode ser sem o sentido da visão. Se tal fosse verdade só poderia reinar sobre a noite no meio dos lamentos dos enfermos. Se tal fosse verdade de que serviriam as cores de seus vestidos pois seu futuro esposo nunca as verá. Se tal fosse verdade, de que serviria o seu cabelo, a sua carne e a sua pele e os seus olhos.

- Dá-me o meu véu aia, pois com ele cobrirei meus olhos e tu serás a última das minhas visões neste Mundo. Leva-me agora até meu senhor.

E a aia obedeceu e levou a princesa até ao esposo que lhe acariciou o rosto, os ombros, o cabelo e o seu cheiro assimilou.

Em breve Ghandhari sentiu vida dentro de si mas parecia que nenhuma queria vingar. E sabendo pela aia que Kunti dera à luz Yudhishira pediu-lhe que esta lhe batesse na barriga com uma barra de ferro e que o fizesse com todas as forças que possuísse. Ghandhari deu à luz uma bola de carne escura e fria como metal, inerte e sem vida.

- Leva essa bola para bem longe de mim, atira-a a um poço sem fundo e deixa-me em paz!

Mas Vyasa, o que foi nascido depois de gerado no meio da neblina, disse à aia para cortar a bola em cem pedaços e que os colocasse em cem delicadas jarras de cerâmica e os regasse com água fresca todas as manhãs. Aproximando-se depois de Ghandhari lhe disse que dessas cem jarras nasceriam cem filhos sendo que o primeiro se chamaria Duryodhana. E os seus gritos foram escutados pelo pai na companhia de Bhishma que lhe comunicou ter o seu filho primogénito vindo ao Mundo com o intuito de o destruir. Se Dhritharashtra desejasse salvar a raça dos homens teria de o sacrificar.

Ghandhari disse que ninguém se atreveria a matar o seu filho sem que antes a matassem para o conseguir.

Madri recebeu o primeiro dos dias de Primavera acompanhada do esposo que observa a sua beleza esplendorosa. Atrevendo-se a tocar-lhe sem ter em conta a terrível maldição lançada pelas gazelas, atrevendo-se a desejar o Amor preferindo-o à própria vida, tentou vencer a morte que o seduziu. Pandu correu atrás de Madri que fugiu para tentar evitar a morte do esposo sem sucesso. Os dois se deitam no chão florido, se amam acabando Pandu por fenecer.

Madri foi ter com Kunti culpando o destino pelo sucedido, ao que Kunti respondeu ter sido Madri mais feliz do que ela pois observou o rosto brilhante de desejo do esposo Pandu que agora irá acompanhar na sua viagem final. Mas Madri pretende ser a companheira na viagem final por ter sido com ela e por ela que Pandu caiu. Entregou seus filhos à guarda de Kunti pois já não possuem pai neste Mundo.

- Serão como meus próprios filhos e tudo connosco partilharão,

E os corpos de Madri e Pandu foram cremados e o fogo os transformou e mais de vinte anos passarão até que a história possa ter continuação.

E Larniki, perdido no centro do reino de todos os silêncios, escuta a história primeira de entre todas as histórias, acrescentando-lhe as partes necessárias para que dela possa agora fazer parte.

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terça-feira, 19 de julho de 2011

MOMENTOS 30


19 de Julho de 2011


Necessito de vos dizer como tudo começa pois as histórias, todas as histórias, contêm uma certa magia no seu início.

De um peixe nasceu, certo dia, a mais bela das princesas que cheirava aos cheiros de todos os nascimentos.

Um eremita ao vê-la assim tão bela, desejou possuí-la. No seio do mais denso e perfumado dos nevoeiros a engravidou dando-lhe um filho, aquele a quem a primeira de todas as histórias foi contada pelas pedras.

Vyasa, filho da névoa, assim nasceu, numa terra sem guerras nem fomes nem misérias e onde homens e deuses viviam lado a lado.

Bhishma, o príncipe perfeito, aquele que nunca poderia ser rei por não poder conceber, irmão de Vyasa, aquele a quem contaram a primeira história. Bhishma, aquele que fez a jura da mais absoluta renúncia, aquele que os deuses enalteceram e a quem ofertaram a mantra que lhe facultará a escolha da hora da sua própria morte.

Bhishma conquistou três princesas em batalha, três mulheres que ofereceu como esposas ao irmão mais novo. Amba, a mais nova, chorando se aproximou de seu senhor dizendo que antes de Bhishma a ter ganho no torneio já o seu coração tinha escolhido um marido em segredo e que o seu amado o sabia e a amava. Ele é Salwa, o rei. Amba perguntou a Bhishma, virtuoso entre os virtuosos, qual a razão porque a deseja casar com o seu meio-irmão, pois ele seguramente entende, como nenhum outro, que o seu coração pertence a outro homem que a aguarda.

Sendo verdade o que dizia, Amba foi libertada para que pudesse ir ter com o seu rei e senhor, mas este a rejeitou pois ela tinha sido o prémio de outro que não ele. Amba disse a Salwa que se encontrava pura e intocada e que por nenhum outro homem fora alguma vez desejada, que era virgem e que seus olhos apenas Salwa conhecem. Mas o rei disse recear Bhishma e que Amba devia regressar pois para si era como se ela já não existisse.

O meio-irmão de Bhishma casou com as outras duas princesas tendo falecido na sua noite de núpcias não tendo havido descendência. Mas se não nascem crianças a história acaba sem ter sequer tido um início.

Vyasa, o que foi criado no meio da neblina, dotado de invisibilidade, foi ter com a mais velha das princesas que não o podia olhar de frente, e lhe disse que iria nascer Dhritharashtra e que este nasceria sem visão.

Vyasa, o que foi criado no meio da neblina, foi ter com a segunda princesa e lhe disse que iria nascer um filho branco como o leite e que se conhecerá como Pandu, o pálido.

E a terceira e mais nova das princesas pediu auxílio a Bhishma, que a salvasse pois ela fora rejeitada pelo homem que ama. Bhishma tinha sido o causador de todo o seu sofrimento, e se a ganhou em combate que a desposasse, mas Bhishma recordou-lhe que tal não era possível pois mulher alguma, nem mesmo Amba, pode fazer parte da sua vida. Se Salwa a rejeitou, Alba está livre para regressar para junto do pai. Mas o pai de Amba é severo e maltrata-a como não se maltratam os animais, e ela propôs caminhar sempre em frente, de vestes rasgadas como penitente, vivendo apenas com um pensamento, como se esse pensamento fosse dádiva e a ajudasse a encontrar alguém que combata Bhishma até que este morra. Sendo Bhishma invencível, Amba fez um voto para que nenhuma mulher neste Mundo possa pensar em outra coisa que não seja a morte de Bhisma.

Pandu, o pálido foi coroado rei pois seu irmão Dhritharashtra era cego e não podia ser rei.

Kunti, aquela que, sem saber, carrega em seu útero toda a fé do Mundo, e a criação que dela nascer será grandiosa e sem ela não estaríamos aqui. Kunti olha o Sol, o seu segredo, casa com o rei Pandu que também desposa Madri.

Numa das inocentes caçadas do rei Pandu se traçou o destino do Mundo. O rei acerta em duas gazelas que eram dois amantes disfarçados e que assim se encontravam para expressar o seu amor. Os dois amantes lançaram uma maldição sobre o rei não podendo este nunca ter em seus braços as esposas pois seguramente morreria.

Pandu fugiu para as montanhas sem deixar traço e Dhritharashtra tomou o lugar do irmão. Madri e Kunti perguntaram-lhe o que iria ser delas e Pandu lhes respondeu que nada tinham para lhes oferecer a não ser pobreza e virtude até á morte. Os três abandonaram o palácio em direcção às montanhas, andaram por muitos dias até que alcançaram as profundezas dos Himalaias, o tecto do Mundo. Aqui fizeram a sua morada mas a sombra da maldição das gazelas escureceu para sempre as suas vidas. Se alguma vez Pandu procurasse fazer amor com Madri ou Kunti a morte o visitaria e perante esta evidência aceitou o inevitável pois isto, pensou ele, era o seu destino.

Mas Kunti carregava no seu coração um antigo segredo. Quando nova um eremita ofertara-lhe um mantra pelos bons serviços prestados. Com esse mantra Kunti podia invocar qualquer dos deuses à sua escolha. E Kunti invocou o deus Sol que foi seu amante e lhe deu um filho mantendo-a virgem. Abandonando todos os seus receios, Kunti caiu nos braços do Sol e instantaneamente tiveram um filho Sol esplendoroso e radiante. Kunti permaneceu receosa e escondeu a sua falha, o seu segredo. Colocou o filho recém-nascido numa cesta e o abandonou à mercê da corrente do grande rio. Um condutor o avistou e o resgatou da morte certa.

Karna, filho de Kunti e do deus Sol. Criança magnífica, cresceu como homem hábil e inspirado mas que no coração mantinha guardada uma sombra amarga pois não sabia quem era.

Tal como o rapaz-pássaro das lixeiras de Allahabad, Karna terá de procurar nas viagens e no conhecimento de todas as histórias qual a que lhe permitirá obter a resposta tão aguardada. Talvez Karna seja irmão de Larniki pois tal como o rapaz-pássaro ele não sabe quem é.

E Kunti revelou o seu mantra a Pandu e como lhe deu uso e como estava certa que o deus Sol a fecundou e lhe deu um filho.

E Pandu pediu-lhe que invocasse Dharma pois perante ele todos os pensamentos se curvam.

- Este é Yudhishthira, o nosso primogénito, filho de Dharma, nascido para ser rei.

E Pandu pediu-lhe outro filho e que invocasse Vayu, deus do Vento, e Kunti assim fez.

- Este é Bhima, filho do vento, forte como o Trovão.

E Kunti invocou Indra, o rei dos deuses.

- Este é Arjuna, o guerreiro perfeito nascido para conquistar.

E Madri pediu a Kunti que esta lhe cedesse o poder da mantra para também gerar um filho e Kunti assim fez, invocando os Aswins, gémeos de olhos dourados.

- Estes são os nossos dois filhos, Nakula e Sahadeva, inseparáveis como a paciência e a sabedoria.

Pandu rejubilou pelos seus cinco filhos descendentes dos deuses.

Eles são Pandava, os cinco filhos de Pandu. Eles são o coração da história primeira, desse poema, e nunca nos deixarão.

Terá Larniki, o rapaz-pássaro, o mesmo sangue dos Pandava?

Será Larniki, o rapaz-pássaro, descendência dos próprios deuses?

Isto é aquilo que a história pretende contar, esta e todas as outras, até a primeira.

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sábado, 16 de julho de 2011

MOMENTOS 29




13 de Julho de 2011


Porque procura o tempo este reino para descansar?

É fácil cair, nunca aqui chegar.

Os que nele moram desejam manter o equilíbrio do reino como sempre existiu. Preservar a natureza, as tonalidades que a envolvem, as montanhas sagradas que não se podem profanar.

O país pertence-lhes, como o céu que o cobre, como as montanhas que o protegem, como as florestas que lhe permitem respirar. Caminhos muito difíceis fazem com que este seja um reino distante, longínquo e raro de visitar. Aqui as histórias, como o tempo, chegaram para repousar.

Assim que percorremos os primeiros trilhos somos envolvidos pela magia da diferença, por uma luz que inebria, por sons extasiantes e passamos a ser parte do reino misterioso, parte das montanhas, parte deste céu que nos cobre, parte dos seus prados, das suas florestas e dos seus rios.

Por momentos esquecemos todos os momentos, como se a magia contida na sagrada marca azul tivesse sido por mim invocada, e o tempo parou.

Este é o reino onde a marca teve o seu início. Os sentidos ficam mais activos e, por breves instantes, isolado como uma ilha no centro da planície verdejante, senti-me o primeiro habitante do planeta.

Sou o primeiro dos seres-humanos, aquele onde a primeira história habitou. Em mim plantaram todas as dúvidas para que a sobrevivência fosse possível.

Já me perdi estando longe no meio do nada, mas tu abraçaste-me, vieste em meu auxílio e iluminaste-me com o teu sorriso. Com tudo a ganhar, caminhar era a única solução. Avançar, utilizar a sagrada marca azul para dar início à primeira de todas as histórias.

Aqui sinto-me verdadeiramente em casa.

Amanhã vou acordar em casa, sozinho ao sol, como ilha, beber destas águas cristalinas de quem já tinha saudades, ler as mensagens contidas em cada árvore, meditar na sua sombra hoje que o sol veio temperar a sagrada marca azul.

Neste reino não existe culpa, os caminhos que se percorrem providenciam recordações dos tempos das primeiras histórias.

Meditei nestas florestas pelo tempo de sete vidas.

Mantive a minha existência camuflada e percorri todos os caminhos do reino, transformei-me no céu que o cobre, nas montanhas que o protegem e até nas florestas onde meditei.

Aqui senti quem verdadeiramente eu sou.

Este é o tempo de recomeçar.

O apelo da viagem regressou. Não posso continuar camuflado a as asas voltaram a bailar. Recordo a dança dos grous e levanto voo bem alto na direcção dos céus que enfeitiçam o reino do Butão.

Procurarei os templos onde se arquivaram as histórias.

Os monges que os preservam relembram aos mais novos como tudo acontece, como os oceanos longínquos já cobriram todo o reino, como o dia amanhece e a noite cai, como a vida se reinventa, como os sonhos fazem viajar, como viajar, como procurar as respostas às escolhas que terão de efectuar, como falar, como comunicar com os contrários, como sacrificar as vontades, como aprender com os males que carregamos dentro de nós, como ler as histórias escondidas no coração das pedras, como tirar partido do jogo e do eterno fluxo do rio, como pertencer à sua corrente, como derrotar todos os males e como meditar.

Sou o rapaz-pássaro.

Fui o rio, o céu, a floresta e a montanha. Só penso na hora em que estarás comigo pois assim sei que me vês, sei que sabes de mim e temos tanto para contar.


É fácil cair

Impedir o equilíbrio de todos os reinos

Pintar de escuro a natureza

Profanar as montanhas sagradas


Este reino não vos pertence

O céu protege-o

As montanhas abrigam-no

As florestas são os seus pulmões

O tempo vem aqui para descansar

Como as histórias


Aqui se esquecem todos os momentos

Os sentidos ficam mais activos

Ajudam na descoberta

Do verdadeiro Eu


Somos o primeiro habitante do planeta

O primeiro onde habitou a primeira história

Somos aquele onde plantaram todas as dúvidas

Para que a sobrevivência fosse possível


Este reino é a nossa casa

Onde tudo recomeça

Onde os céus enfeitiçam

Onde se arquivaram todas as histórias

Desde o tempo em que os oceanos o cobriam


Este é o reino dos abraços

Onde os monges recordam e ensinam

Como tudo acontece

Como a vida se reinventa

Como se derrotam todos os males

E como meditar

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