domingo, 29 de maio de 2011

MOMENTOS 11


28 de Maio de 2011


Procuro as primeiras palavras.

Para que o nascimento da primeira história pudesse ter acontecido, nasceram na boca dos homens as primeiras palavras.

A primeira história perpetuada e transmitida, é transformada para além dos primeiros homens, por todos os outros a quem a força da mensagem conseguiu alcançar. As palavras e as mensagens cresceram como o rio sagrado.

Os irmãos aprenderam todas as histórias, foram as pontes e as estradas por onde viajaram essas aventuras. As palavras desses oito irmãos cresceram e multiplicaram-se por todos os que as escutaram essa primeira vez. Os herdeiros caminharam depois, como os irmãos mensageiros, com a mesma missão. Transmitiram o poder contido nessas primeiras palavras e todas as histórias que viram nascer. E esses mensageiros fizeram crescer as histórias, as palavras e as mensagens, até que os oito irmãos foram desaparecendo um após outro pelo implacável chamamento das estrelas. Os herdeiros tinham cumprido integralmente a sua missão e já outros herdeiros dos primeiros se encarregavam de transmitir as palavras, as histórias, todas as histórias nascidas depois da primeira assim como a primeira de todas as histórias.

Não se sabe quantas gerações de herdeiros desses herdeiros dos oito irmãos seguiram pela imensidão do grande rio sagrado ensinando o que estava contido nas palavras da primeira história. O rio encarregou-se de lhes fornecer a linguagem que se transformou com o poder do deus do tempo. As palavras evoluíram, serpentearam, mas as histórias que nasceram depois da primeira mantinham a mesma alegria, ensinavam a mesma lição. O segredo do nascimento da montanha e do tempo, da raiz do universo e do grande rio sagrado está encriptado nas palavras da primeira história.

A viagem do grande Ganges teve início num lugar longínquo onde o grande rio sagrado já tinha acontecido. Dentro dos infinitos universos que o constituem, as suas águas poderosas resolveram visitar os habitantes do pequeno planeta azul junto às montanhas onde o deus dos deuses habita, tudo vê e tudo cria. O próprio deus dos deuses defende o planeta da chegada violenta do grande rio sagrado que causaria a sua total destruição. Estas palavras juntamente com as suas filhas, netas e bisnetas, foram crescendo com a força reconciliadora e perpétua das águas milagrosas do Ganges que assim chegou.


29 de Maio de 2011


Música e flores.

Não consigo recordar as primeiras oferendas embrulhadas em canções.

Passaram as preces, as orações e meditaram os peregrinos envoltos pelas minhas águas.

Acordo.

Procuro alimento.

Nenhum outro vale recebe com tanto agrado as primeiras águas que viajam desde o alto das grandes montanhas sagradas como em Gomukh. O ar frio arrefece o início da viagem. Já passei por aqui e a altura em que o outro início aconteceu volta agora a repetir-se. Sem asas deslizo. Tudo à minha volta me pertence. A liberdade simpatizou comigo. Foi aqui criada, aqui onde os dias são iguais desde o início até ao fim das viagens.

As montanhas protegem a descida. Corro livre pelo meio dos rochedos da mãe branca que abriga o início da viagem. Deixo-me embalar pelos sons das veredas, dos nevoeiros, dos cânticos, das mensagens.

Soube hoje, mais uma vez, que tudo vai recomeçar.

Os olhos de milhões irão reflectir-se nas minhas águas. Vão recordar, vão desejar, vão festejar com as estrelas que também iluminarão o meu serpentear.

Este é um livro difícil de resumir. O tempo lhe trará poder, intensidade. Pensar esta viagem como um crescimento. Ao longo dela serei tratado e preparado, evoluirei com os cuidados dos peregrinos, com as suas histórias, as suas preces e palavras.

As minhas asas são as palavras. As histórias, como as primeiras, são o que possuo para evitar a solidão. No leito viajo como as estrelas no firmamento. Carrego o passado desconhecido que procuro novamente. As primeiras vozes deixaram no leito as mensagens dos peregrinos.

Este livro é muito mais que as palavras do passado. O doce recordar não é importante para esta história mas faz parte dela. O sol põe-se e acorda em locais diferentes de dia para dia. Viajante solitário aquece o alto da montanha sagrada fazendo-me crescer. Serpenteio aquecido pelo seu calor que me envolve e acompanha.

Hoje é quinta-feira e todos os outros dias que o deus sol decidir.

Escrevo a minha confissão.

Desejo ser novamente o rapaz-pássaro que voa em liberdade no coração das nuvens! Não aguentarei muito mais tempo esta dimensão, a minha idade não mo permite. Lá do alto consigo vislumbrar a verdadeira dimensão da insignificância. Nessa insignificância cabem metades inteiras de universos que depois mergulham em mim, que depois são transportados, purificados e que viajam em constante crescimento até à foz.

Onde fica a morada deste reino que visito? Transportaram-me até ao rio que se transformou em céu e me acolheu. Abrigou-me por mais de cem dias para lá do mais inóspito dos desertos, o mesmo céu que já foi universo e já foi o nada.

O momento é de lembrança.

Passei por aqui mais que uma vez. Por mais de uma vez aqui senti o desejo de regressar e de ser o rapaz-pássaro. Quero voar, voltar ao início, voltar ao exacto local onde a força dos peregrinos me arrastou até ao fundo do grande rio sagrado em que me transformei.

Este é o momento de lembrança. O momento em que a viagem começa transparente e iluminada. O momento em que as palavras deste livro ganham força e coragem para se afastarem das primeiras e voarem ímpares em direcção à foz.

Sou o rio e sou a carta e sou o livro, este livro em que me transformei.

Usar as palavras como as primeiras para com elas transformar os momentos e viajar.


Ser palavra

O rio

Voar sem asas

Como a primeira história


O momento em que a viaja começa

Novamente

A recordar

Momento de lembrança


As asas são as histórias

São as palavras

Aquecidas pelo deus sol

Que ilumina o seu serpentear


E se mesmo o universo

Já foi o nada

Usarei as palavras que nada foram

Para transformar os momentos

E viajar

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terça-feira, 24 de maio de 2011

MOMENTOS 10



14 de Maio de 2011


Ainda aqui estou. Levanto a mão para escrever, para verificar se as histórias continuam a fluir na cor branca da folha. Nesta permanente procura elas acabam por acontecer. Ganham vida e uma identidade absolutamente independente.

Caminho com os momentos. Pertencem-me mas ao deixar que se tenham aventurado pelas margens destes lagos brancos que as recebem, os dias passaram a ser diferentes. Ainda aqui estou mas já sou outro. Os que conheci neste crescimento faziam parte de quem sou. As suas palavras e os seus sorrisos, as transformações, as viagens, as dores, as alegrias e as memórias, as paixões, loucuras, premonições, medos e vitórias passaram a enriquecer-me pois eram parte de mim. Os dias e os anos cresceram, as viagens aconteceram, os misteriosos desígnios escondidos nas entrelinhas das histórias foram sendo desembrulhados, alinhavados e a luz acabou por iluminar a página em branco. Esta manhã aconteceu assim e neste momento é das histórias passadas que me recordo, essas que ao nascerem não definham nem murcham nem me deixam entristecido ou isolado. As areias dos tórridos desertos escondem milhares de outras histórias, como as galáxias perdidas contidas no nosso pequeno universo inexplorado.

Viro a folha, nasce nova página, um outro caminho, outro momento.

Queria voltar a voar! O rio que agora sou ainda não me devolveu as asas que despi junto aos planaltos gelados das grandes montanhas do Norte. Este percurso é feito com outras asas, com outros sentidos, numa dimensão tão gigantesca que o peso da nova missão acaba por impressionar. Alimento-me dos peixes, das preces dos peregrinos, dos silêncios, do reflexo da lua e dos raios invisíveis do deus sol.

Cresci com as gotas que me pertencem, com as histórias que me contam, com as histórias que nele resolvi escrever. Os abismos são ultrapassados e as chuvas fortes da mãe monção enriquecem-me o corpo. Ajudam-me a alimentar quem de mim tudo retira. Os ventos e ciclones que nasceram como brinquedos nas mãos da menina princesa do Ganges fazem parte desta história. Surgiram com a mãe monção neste bailado que me faz crescer em tamanho aumentando-me o caudal e a distância entre margens. Os avós dedicam-se aos netos e os netos veneram os avós. A sabedoria perpetua-se ao longo das minhas margens desde que o primeiro dos homens aqui se fixou. Estes são os seus herdeiros, os que ainda falam as estranhas linguagens das primeiras tribos e que, mais para Sul, ainda se cantam, se ensinam e se perpetuam. São como o fogo sagrado que as viu nascer. Os palácios eram construídos com as palavras. As histórias forravam o chão, as paredes, os pilares e todas as coberturas eram primorosamente trabalhadas com as mais delicadas e ritmadas prosas que esses primeiros habitantes se encarregavam de proteger.

O grande Ganges sente esse segredo escondido e antigo quando passa em Varanasi. Aqui as palavras antigas ainda são lidas, contadas, ensinadas e assim perpetuadas até hoje, tal como outrora.

Neste momento eu sou o Ganges. Agora, neste momento, a música delicada que essas palavras vão tecendo passam do ar para o corpo húmido do rio. As histórias vêm do longínquo passado e mergulham nas águas do grande rio sagrado. Daqui seguirão, como sempre, até ao que falta percorrer. Algumas das histórias subirão aos céus antes de outras. Algumas irão descer pelos cumes gelados das montanhas do Norte, ficarão nelas eternizadas por milénios, pintando de branco o coração das cordilheiras. Outras, transformadas em cristais de luz, derreterão.

Descem as encostas até se voltarem a fundir, até voltarem a ser riacho, ribeiro, lagoa, até voltarem a encontrar as companheiras perdidas que se vão encaminhando, uma a uma, até a nascente do Ganges e daí até aos planaltos mais tranquilos e daí até aos campos férteis e daí até ao serpentear luminoso que abraça a paisagem e se funde com o povo que nele se banha e daí até Varanasi para que as palavras das primeiras histórias voltem ao lugar que as viu nascer, e aqui eu também sou.

As histórias, todas as histórias, já são diferentes.

As palavras tal como os sons continuam iguais.

As viagens tal como o tempo, encarregam-se de as enobrecer. Todas as histórias e palavras ficaram mais ricas com o passar dos dias, dos anos, dos séculos e dos milénios. Muitas foram as viagens que fizeram desde a primeira vez, desde que foram ensinadas, e logo aí começaram a crescer.

As histórias são os momentos. Os momentos são perpetuados através das histórias. As gotas continuam a descer dos céus revoltados. A monção é forte e nos últimos dois meses não pára de chover seja noite ou seja dia.

Cresço.

Sinto-me forte e poderoso. As palavras misturadas com as águas das chuvas, com o gelo das montanhas, com as preces dos peregrinos, com as histórias que quero acrescentar, produzem esse efeito no meu corpo. As asas que me fazem voar não são feitas de penas. As asas que me fazem voar são as histórias, são as palavras do povo, dos peixes, das gotas e dos momentos. O rio sou eu!

Deixei para trás as margens, os desertos, as aldeias perdidas e a galáxia onde me fazia transportar. Deixei para trás as asas brancas e a sagrada marca azul. Deixei para trás a nascente do grande rio sagrado e mergulhei. Esse foi o momento em que decidi contar mais esta história. A história do rapaz-pássaro que se transformou no próprio rio sagrado que o viu nascer.



O rio feito momento

As palavras enganadas

Que o tempo transformou

Desde o início das histórias


Este rio de vida

Bebe cada letra

Cada palavra voadora

E renasce

Serpenteando como a neblina

Aprende

Semeia

Recebe as palavras antigas

Cresce


Do sul chegaram as palavras

Em Varanasi se perpetuam

Reconstrói a vida

Ontem como hoje

Neste momento


Transformadas em rio

Em espuma

Em nuvem voadora

Atingem a montanha

Mãe sagrada


Lágrimas brancas

Gotas renovadas

Geladas

Acordam riachos

Galgam as primeiras veredas

Cascatas


Descem até ao princípio

Junto à nascente

Onde mergulhei

E me transformei

No sagrado rio sem asas


Daqui consigo escutar melhor a solidão dos pássaros. Os que voam sentem-se perdidos. Aquele imenso vazio que os separa, atordoa. Quando segui solitário nos dias e nas noites do deus dos desertos as palavras atingiram-me como flechas envenenadas. A morte surgiu como companheira, a escuridão era quente e aconchegava. O silêncio a perpetuar a dor e ilusão de ser herói como as garças e os falcões. As asas cansadas trabalharam como nunca. Perdi plumas e a fadiga já nem tinha nome. Nesses negros caminhos descobri qual o sabor da solidão dos pássaros.

Cheguei, alcancei, ultrapassei distâncias. É a vitória que aquece os membros derrotados e nos faz continuar. Do outro lado esconde-se a vitória. Do outro lado vencemos a solidão e apresentam-se novos rumos. Sem pressas os caminhos devem ser percorridos. Os silêncios serão substituídos pelo vento das falésias, pelo adocicado perfume das florestas, pelos regatos que procuram a nascente do grande rio sagrado. Eu sou o rio, a solidão e as histórias feitas com as palavras antigas que Varanasi perpetua.

Perdi as asas mas sou gigante do início até ao fim. São tantas as partes de mim que só quero voltar a ser aquele pequeno rapaz-pássaro que mergulhou nas águas puras da nascente do grande Ganges.

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sexta-feira, 20 de maio de 2011

MOMENTOS 9



20 de Maio de 2011


A noite chegou tranquila. As árvores não mexem, as folhagens não bailam tal a força da brisa. O Ganges é um espelho, reflecte a terra lá em baixo por onde navegam as oferendas estreladas dos peregrinos, dos penitentes, dos viajantes. Repousa o rio e medita. Escuta o silêncio dos peixes. Avista os vultos imponentes das grandes montanhas do Norte que o vêem nascer. Como disse a menina princesa do Ganges, a amiga lua acompanha os silenciosos passos do rio.

Os barqueiros vivem do rio, no rio e são o rio. Sabem os seus caprichos e respeitam-no, veneram-no e entendem as suas palavras como ninguém. Encontraram aqui o seu lugar como o mais antigo de seus antepassados. O rio sagrado pertence-lhes e eles são o rio, como os pais, os avós e todos os outros pais antes destes últimos até ao primeiro. Acreditam na protecção da lua pois o rio é seu aliado. Em noites tranquilas como esta a aliança entre o rio, a lua, os barqueiros e o firmamento estrelado que vai reflectindo os sonhos dos peregrinos, é mais visível. O sol tem vergonha de acordar quando a lua e o grande rio sagrado dão assim as mãos nestes momentos. A maior de todas as noites acontece então, sem o estorvo do calor e da intensa luminosidade do sol impiedoso.

Adormecer como as calmas águas do Ganges é a verdadeira bênção. O momento em que este tempo é parado, a emoção de mais um Verão com saudade que beija o leito sagrado e as margens e o espelho de água que parece adormecido. As barcaças, como música, vão obedecendo ao som do esquecimento. Carregam os bisnetos dos que já as fizeram avançar silenciosas e fazem parte física do grande rio sagrado. Preferem manter estes segredos perpetuados nas memórias, aquelas que tantas repetidas vezes o poder das monções veio ameaçar. A água faz acontecer, vem à terra do céu para onde voou depois de nascer, de derreter, de se fundir para viajar. Rumo ao desconhecido avança, cresce, transforma, diverte-se, destrói, cria energia, é subjugada, reinventa-se, perpetua a eterna viagem sem se incomodar com o deus tempo, o deus dos desertos, o deus sol, porque faz parte do grande rio sagrado.

Visitar este momento na viagem que agora começou. Os olhos curiosos ganham coragem para finalmente olhar. Os olhos curiosos ganham coragem e o rio começa verdadeiramente a sentir. O corpo flutua como as barcaças dos donos do rio. Viro-me de lado e recordo o peso das asas que me levaram até às montanhas onde nasci. Recordo o maravilhoso som que faziam e os desenhos que marcavam o coração das nuvens.

As crianças aproveitam a noite para se banharem neste tranquilo espelho em que me transformei. Com a ajuda da lua conseguem ver como se fosse dia e os saltos que fazem transformam-nas em rapazes-pássaro. Acabam a mergulhar felizes no rio que as abençoa, refresca e eterniza. Elas são os verdadeiros rapazes-pássaro. A maior de todas as liberdades é sentida durante esse momento. Os braços deixam-se seduzir pelo peso do corpo a caminho do rio sagrado que as irá cobrir, erguer, dar-lhes asas para novo salto rumo ao vazio e às estrelas. Os seus corpos são bailarinos, são ave, são peixe, são um abraço terno que me oferecem. A noite ganha novos sons que vencem o silêncio que outrora reinava.

Vejo o céu e as estrelas, os bailados dos rapazes-pássaro de Varanasi, as encostas longínquas das montanhas-mãe. Vejo os descendentes dos primeiros donos do grande Ganges, vejo a lua amiga que me foi indicada pela menina princesa do Ganges, vejo o silêncio e o sol impiedoso que deseja nascer transformado em Verão. Vejo as orações e as oferendas, vejo as gotas ainda frescas que no início da viagem me fazem crescer, vejo as margens, os peixes e a noite abençoada. Vejo a noite tranquila, as árvores que não mexem e vejo a terra reflectida nos olhos e vejo como cresceu a vontade de dominar o poder misterioso do deus tempo e fazer dele aliado.


Ainda só cresceu um breve instante

Onde nascem todos os rapazes-pássaro

Sem asas

Com braços de gigante

E mal sentem o chamamento do Ganges

Saltam

Querem-no seu


Mergulham como o tempo

Querem ser o tempo

O rio

A eternidade

O próprio céu


Encontram um amigo

Encontram-se na tempestade gelada

No sonho

No abrigo


Recordam o tempo dos barqueiros

Os que plantaram as primeiras espumas

Desciam o rio

Eram o rio

Naquele momento


E os seus corpos bailarinos

Ofereceram-me esta dança

Gravaram-me a lembrança

E adormeci

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quinta-feira, 19 de maio de 2011

MOMENTOS 8


19 de Maio de 2011


Na minha ilusão de pertença continuo a viagem para onde me levam os pensamentos. O silêncio regressou, as cores cinzentas do Ganges foram apaziguadas e o Norte, enquanto destino, não nos inquieta. A temperatura desceu consideravelmente mas não provoca danos nas asas nem incomoda o corpo descoberto. O azul que me pintaram resguarda o corpo do desconforto que gelo, neve e ventos cortantes causariam. O Ganges aqui nada mais branco. Nada límpido, puro como os cristais derretidos que lhe alimentam o crescimento. Trouxe-me até aqui onde é criança, onde joga com a montanha, onde me entende melhor, onde me ajuda a meditar, onde derrete os segredos e relativiza as questões. O rio é meu amigo como a sua menina princesa. Neste lugar o chão não nos ampara os passos, não existe Norte, Sul, Este nem Oeste. Não existem caminhos pois todos eles desaguam bem longe daqui. Não existe desconfiança, maldade e o poder sagrado da marca azul destrói por completo a malícia do deus tempo. Passaram já milénios e tudo permanece imutável. Ao longo desse período quantos rapazes-pássaro terão sido ajudados a chegar até aqui? O lugar onde nasce o tempo é o lugar onde o tempo parou, é o lugar onde nasce o sonho e os segredos, é o lugar onde o rio se transforma em céu, horizonte e galáxia. É este o lugar onde o fogo abranda e onde o gelo reconstrói as vidas. É este o lugar onde todas as forças se misturam para que as águas do rio sagrado nasçam com ímpar sabedoria. Cada gota é construída e reforçada com o poder de outras gotas, crescendo no leito que se transforma em luz, em céu e em caminho.

Porque me trouxe a vontade até aqui? Porque me agarraram, me arrastaram quando tentava fugir da multidão? Porque me engoliram as águas do Ganges? Porque me foi apresentada a sua menina princesa e porque se virou o rio até ser céu? Porque me cresceram asas e me foram acrescentados sagrados poderes azuis? Porque me continuam a dizer as vozes que devo voar como as garças, como os falcões, e me obrigam a procurar, a viajar, a meditar e a fazer parar o tempo?

Aqui os pensamentos saem em forma de gota e deslizam até às companheiras que perpetuam o Ganges e o fazem respirar.

Aos momentos, a todos os momentos, dedicamos o tempo devido, segredamos os contornos negros da viagem, a passagem perdida, o deserto cruel, os roteiros abandonados por engano. Encontrar o momento perdido, revelar o momento ignóbil em que a ferida é transformada em fumo, vento, em ilusão.

Aqui onde o rio nasce nós nascemos.

Foi aqui que a viagem começou! Mas não é para aqui que os viajantes regressam após milhões de inícios? Foi aqui que este momento se repetiu. Já aqui estive, tal como agora! Sei que já aqui estive presente a meditar, tal como agora! Não é esta a primeira vez que a viagem regressa a este início, a este branco purificado. As comportas da alma estão abertas de par em par.

Apanho com a brisa gélida, engulo o ar rarefeito, escuto o som das gotas já rio a avançar com vigor em direcção aos sagrado caminhos.

Os momentos desaparecem nas águas jovens do Ganges. Eu desapareço nas águas jovens do Ganges. Despi as asas, limpei o azul que me foi oferecido na aldeia das colinas cansadas, abandonei o corpo, liguei-me às estrelas e às cores do firmamento. No Ganges pintado com tonalidades transparentes e cristalinas acabei de mergulhar.


O Ganges sou eu

Jovem

Ligado às estrelas

Como um céu


Limpei de mim outros momentos

Limpei de mim todo o azul

Transformei as feridas em fumo

Transparente véu


Ofereci às gotas purificadas

O meu corpo

Que nelas mergulhou


Despi sem receio as asas sagradas

Limpei os pés

As feridas ensanguentadas

Que o rio acalmou


Neste momento o Ganges sou eu

Jovem

Ligado ao firmamento

Como um céu

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quarta-feira, 18 de maio de 2011

MOMENTOS 7


17 de Maio de 2011


O cansaço cobre as colinas, veste-lhe os cumes e penetra nas suas entranhas deixando-as sem respiração. Os despojos da viagem até estas paragens são pesados. O tempo mudou. O Ganges ficou cinzento e morno. As estrelas foram apagadas e as nuvens delicadas deram lugar a este manto cinzento que decora as águas do rio sagrado. As construções aqui semeadas são da cor das próprias colinas, misturam-se com elas como se lhes tivessem sido esculpidas nas carnes todas as formas e segredos. O nevoeiro fechou definitivamente a conversa.

O tempo tem dois rostos, duas cabeças, são duas criaturas idosas que procuram encontrar nas palavras um abrigo. O silêncio vence, vence pela clareza e pela forma como lhes permite meditar. Permite-lhes construir as asas que lhes faltaram, que lhes foram sonegadas pela miséria, pela fome, pelas guerras e pela loucura generalizada que tomou conta dos homens que habitam estas colinas cansadas. Sem presas o nevoeiro envolve-as para melhor as escutar. No olhar ausente habita a mesma dúvida da infância, a mesma incompreensão, a mesma inocência.

Os passos da idosa são pequenos e arrastados. O companheiro ajuda-a na caminhada amparando-lhe o braço direito, guardando-o entre o corpo e a sua mão. Ajuda-a e nesse gesto percebe a solidão, percebe o peso do nevoeiro cerrado que lhes raptou o tempo e os mantém na mesma dúvida inocente da juventude de outrora.

Gostava de ter tido coragem para lhes perguntar como foi. Que momentos terão sido os deles? Que luzes e que sóis lhes terão iluminado a viagem? O tempo derrota estas viagens, ameaça engolir estas colinas, estas aldeias que por aqui foram semeadas. Ameaça engolir a luz e a esperança como um ditador enlouquecido. É um risco voar como garça por estas paragens sombrias e cinzentas. O medo vai escondendo as gentes no interior das habitações. As ruas permanecem desertas e somente os animais ousam avançar por elas como se fossem só suas. O conforto não forra este livro mas a sedução do passeio encerra novidades extraordinárias que se folheiam com prazer e orgulho. Ao atrever-me descobrir o que se esconde por detrás daqueles receios acabarei por responder a esta interrogação. Não posso permitir-me continuar como até aqui. Não posso deixar de me aventurar, de descer até à cidadela das colinas cansadas e dos habitantes inseguros.

Este cinzento desaparecerá.

As águas do grande rio sagrado deixarão de respirar se a temperatura não descer e se as galáxias não voltarem a dançar o bailado iluminado da menina princesa do Ganges.

Na minha infância os ruídos são o que mais recordo. Embrulhados, escondidos, resguardados dos perigos, afastados de tudo aquilo que os pudesse apagar, deixei que permanecessem longe, bem longe, para que nenhuma maldade lhes pudesse chegar. Repito vezes e vezes sem conta esta vontade que me cresceu com as asas. Repito vezes e vezes sem conta que os quero desembrulhar, que os quero voltar a escutar sem medos e sem receios, apesar de todo este nevoeiro que teimosamente mantém o Ganges afastado dos olhares e das recordações.

Alguém mora nestas casas, os rostos das crianças são os primeiros a comparecer às janelas gastas das habitações. Ouvem-se vozes aflitas de quem os tenta chamar de volta, de quem os tenta proteger de qualquer coisa terrível que os mantém em sobressalto. A minha inquietação inicial desapareceu com os rostos das crianças e maior foi a minha alegria quando muitos deles ousaram finalmente sair dos esconderijos e avançaram na direcção das minhas asas. Foram elas que fizeram desabrochar os rostos e as vontades destes habitantes. Depois das primeiras crianças terem observado cuidadosamente todas as texturas e as dimensões novas destes meus membros emplumados, os restantes moradores acabaram também por vencer os embaraços e todos vieram receber-me no centro da povoação. Ofereceram-me comida e mantimentos para a restante jornada. O espanto inicial foi substituído por uma sincera alegria. Nunca tinha por aqui passado nenhum menino-pássaro. As minhas asas carregam novas sensações, toques e afagos de amizade. Mãos delicadas serenaram a plumagem e os músculos cansados. Bálsamos e perfumes ornamentaram as cores baças das asas. Transportaram-me depois às costas de um dos seus mais nobres corcéis e mostraram-me assim em festa por toda a aldeia. Os mais idosos colocaram-me em redor do pescoço e na cabeça colares e grinaldas floridas e acrescentaram-me tonalidades azuladas desde a cabeça até aos pés. As asas, às minhas asas, deixaram a cor natural que lhes pertencia. O seu brilho e perfume ganharam esplendor. Renovaram-me com tanta alegria. Durante dez dias me fizeram seu. Conheci todos os lugares importantes deste inóspito e recolhido lugar. Aqui só se consegue chegar voando mas algo de muito errado os tem vindo a afligir. Nas suas palavras nota-se a marca do desassossego e os rostos não escondem o claro envio dessa mensagem.


Porque te assusta o desconhecido

A falésia chamou por ti

O rosto das crianças

Surgiu nas janelas

Venceu o receio


As asas promovem a alegria

Como voa a esperança

Adormece o pavor

O medo

E as delicadas mãos

Tratam com carinho

Renovam a força

Alimentam a vontade em crescimento


Não tenhas medo de voar

Pela neblina

Pelo nevoeiro carregado do Ganges

Se do lado de lá dessa muralha

Nascer a luz

E o doce da amizade te vier visitar

Por um momento

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