quarta-feira, 18 de maio de 2011

MOMENTOS 7


17 de Maio de 2011


O cansaço cobre as colinas, veste-lhe os cumes e penetra nas suas entranhas deixando-as sem respiração. Os despojos da viagem até estas paragens são pesados. O tempo mudou. O Ganges ficou cinzento e morno. As estrelas foram apagadas e as nuvens delicadas deram lugar a este manto cinzento que decora as águas do rio sagrado. As construções aqui semeadas são da cor das próprias colinas, misturam-se com elas como se lhes tivessem sido esculpidas nas carnes todas as formas e segredos. O nevoeiro fechou definitivamente a conversa.

O tempo tem dois rostos, duas cabeças, são duas criaturas idosas que procuram encontrar nas palavras um abrigo. O silêncio vence, vence pela clareza e pela forma como lhes permite meditar. Permite-lhes construir as asas que lhes faltaram, que lhes foram sonegadas pela miséria, pela fome, pelas guerras e pela loucura generalizada que tomou conta dos homens que habitam estas colinas cansadas. Sem presas o nevoeiro envolve-as para melhor as escutar. No olhar ausente habita a mesma dúvida da infância, a mesma incompreensão, a mesma inocência.

Os passos da idosa são pequenos e arrastados. O companheiro ajuda-a na caminhada amparando-lhe o braço direito, guardando-o entre o corpo e a sua mão. Ajuda-a e nesse gesto percebe a solidão, percebe o peso do nevoeiro cerrado que lhes raptou o tempo e os mantém na mesma dúvida inocente da juventude de outrora.

Gostava de ter tido coragem para lhes perguntar como foi. Que momentos terão sido os deles? Que luzes e que sóis lhes terão iluminado a viagem? O tempo derrota estas viagens, ameaça engolir estas colinas, estas aldeias que por aqui foram semeadas. Ameaça engolir a luz e a esperança como um ditador enlouquecido. É um risco voar como garça por estas paragens sombrias e cinzentas. O medo vai escondendo as gentes no interior das habitações. As ruas permanecem desertas e somente os animais ousam avançar por elas como se fossem só suas. O conforto não forra este livro mas a sedução do passeio encerra novidades extraordinárias que se folheiam com prazer e orgulho. Ao atrever-me descobrir o que se esconde por detrás daqueles receios acabarei por responder a esta interrogação. Não posso permitir-me continuar como até aqui. Não posso deixar de me aventurar, de descer até à cidadela das colinas cansadas e dos habitantes inseguros.

Este cinzento desaparecerá.

As águas do grande rio sagrado deixarão de respirar se a temperatura não descer e se as galáxias não voltarem a dançar o bailado iluminado da menina princesa do Ganges.

Na minha infância os ruídos são o que mais recordo. Embrulhados, escondidos, resguardados dos perigos, afastados de tudo aquilo que os pudesse apagar, deixei que permanecessem longe, bem longe, para que nenhuma maldade lhes pudesse chegar. Repito vezes e vezes sem conta esta vontade que me cresceu com as asas. Repito vezes e vezes sem conta que os quero desembrulhar, que os quero voltar a escutar sem medos e sem receios, apesar de todo este nevoeiro que teimosamente mantém o Ganges afastado dos olhares e das recordações.

Alguém mora nestas casas, os rostos das crianças são os primeiros a comparecer às janelas gastas das habitações. Ouvem-se vozes aflitas de quem os tenta chamar de volta, de quem os tenta proteger de qualquer coisa terrível que os mantém em sobressalto. A minha inquietação inicial desapareceu com os rostos das crianças e maior foi a minha alegria quando muitos deles ousaram finalmente sair dos esconderijos e avançaram na direcção das minhas asas. Foram elas que fizeram desabrochar os rostos e as vontades destes habitantes. Depois das primeiras crianças terem observado cuidadosamente todas as texturas e as dimensões novas destes meus membros emplumados, os restantes moradores acabaram também por vencer os embaraços e todos vieram receber-me no centro da povoação. Ofereceram-me comida e mantimentos para a restante jornada. O espanto inicial foi substituído por uma sincera alegria. Nunca tinha por aqui passado nenhum menino-pássaro. As minhas asas carregam novas sensações, toques e afagos de amizade. Mãos delicadas serenaram a plumagem e os músculos cansados. Bálsamos e perfumes ornamentaram as cores baças das asas. Transportaram-me depois às costas de um dos seus mais nobres corcéis e mostraram-me assim em festa por toda a aldeia. Os mais idosos colocaram-me em redor do pescoço e na cabeça colares e grinaldas floridas e acrescentaram-me tonalidades azuladas desde a cabeça até aos pés. As asas, às minhas asas, deixaram a cor natural que lhes pertencia. O seu brilho e perfume ganharam esplendor. Renovaram-me com tanta alegria. Durante dez dias me fizeram seu. Conheci todos os lugares importantes deste inóspito e recolhido lugar. Aqui só se consegue chegar voando mas algo de muito errado os tem vindo a afligir. Nas suas palavras nota-se a marca do desassossego e os rostos não escondem o claro envio dessa mensagem.


Porque te assusta o desconhecido

A falésia chamou por ti

O rosto das crianças

Surgiu nas janelas

Venceu o receio


As asas promovem a alegria

Como voa a esperança

Adormece o pavor

O medo

E as delicadas mãos

Tratam com carinho

Renovam a força

Alimentam a vontade em crescimento


Não tenhas medo de voar

Pela neblina

Pelo nevoeiro carregado do Ganges

Se do lado de lá dessa muralha

Nascer a luz

E o doce da amizade te vier visitar

Por um momento

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