quinta-feira, 19 de maio de 2011

MOMENTOS 8


19 de Maio de 2011


Na minha ilusão de pertença continuo a viagem para onde me levam os pensamentos. O silêncio regressou, as cores cinzentas do Ganges foram apaziguadas e o Norte, enquanto destino, não nos inquieta. A temperatura desceu consideravelmente mas não provoca danos nas asas nem incomoda o corpo descoberto. O azul que me pintaram resguarda o corpo do desconforto que gelo, neve e ventos cortantes causariam. O Ganges aqui nada mais branco. Nada límpido, puro como os cristais derretidos que lhe alimentam o crescimento. Trouxe-me até aqui onde é criança, onde joga com a montanha, onde me entende melhor, onde me ajuda a meditar, onde derrete os segredos e relativiza as questões. O rio é meu amigo como a sua menina princesa. Neste lugar o chão não nos ampara os passos, não existe Norte, Sul, Este nem Oeste. Não existem caminhos pois todos eles desaguam bem longe daqui. Não existe desconfiança, maldade e o poder sagrado da marca azul destrói por completo a malícia do deus tempo. Passaram já milénios e tudo permanece imutável. Ao longo desse período quantos rapazes-pássaro terão sido ajudados a chegar até aqui? O lugar onde nasce o tempo é o lugar onde o tempo parou, é o lugar onde nasce o sonho e os segredos, é o lugar onde o rio se transforma em céu, horizonte e galáxia. É este o lugar onde o fogo abranda e onde o gelo reconstrói as vidas. É este o lugar onde todas as forças se misturam para que as águas do rio sagrado nasçam com ímpar sabedoria. Cada gota é construída e reforçada com o poder de outras gotas, crescendo no leito que se transforma em luz, em céu e em caminho.

Porque me trouxe a vontade até aqui? Porque me agarraram, me arrastaram quando tentava fugir da multidão? Porque me engoliram as águas do Ganges? Porque me foi apresentada a sua menina princesa e porque se virou o rio até ser céu? Porque me cresceram asas e me foram acrescentados sagrados poderes azuis? Porque me continuam a dizer as vozes que devo voar como as garças, como os falcões, e me obrigam a procurar, a viajar, a meditar e a fazer parar o tempo?

Aqui os pensamentos saem em forma de gota e deslizam até às companheiras que perpetuam o Ganges e o fazem respirar.

Aos momentos, a todos os momentos, dedicamos o tempo devido, segredamos os contornos negros da viagem, a passagem perdida, o deserto cruel, os roteiros abandonados por engano. Encontrar o momento perdido, revelar o momento ignóbil em que a ferida é transformada em fumo, vento, em ilusão.

Aqui onde o rio nasce nós nascemos.

Foi aqui que a viagem começou! Mas não é para aqui que os viajantes regressam após milhões de inícios? Foi aqui que este momento se repetiu. Já aqui estive, tal como agora! Sei que já aqui estive presente a meditar, tal como agora! Não é esta a primeira vez que a viagem regressa a este início, a este branco purificado. As comportas da alma estão abertas de par em par.

Apanho com a brisa gélida, engulo o ar rarefeito, escuto o som das gotas já rio a avançar com vigor em direcção aos sagrado caminhos.

Os momentos desaparecem nas águas jovens do Ganges. Eu desapareço nas águas jovens do Ganges. Despi as asas, limpei o azul que me foi oferecido na aldeia das colinas cansadas, abandonei o corpo, liguei-me às estrelas e às cores do firmamento. No Ganges pintado com tonalidades transparentes e cristalinas acabei de mergulhar.


O Ganges sou eu

Jovem

Ligado às estrelas

Como um céu


Limpei de mim outros momentos

Limpei de mim todo o azul

Transformei as feridas em fumo

Transparente véu


Ofereci às gotas purificadas

O meu corpo

Que nelas mergulhou


Despi sem receio as asas sagradas

Limpei os pés

As feridas ensanguentadas

Que o rio acalmou


Neste momento o Ganges sou eu

Jovem

Ligado ao firmamento

Como um céu

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