sexta-feira, 5 de agosto de 2011

MOMENTOS 34



4 de Agosto de 2011


Reconheço as brisas que rodeiam a norte a entrada da cidade. Convidaram-me a regressar a Allahabad quando todos os peregrinos se reúnem para o Ardh Khumb Mela.

O grande Ganges prepara-se para os acolher. Os próximos quarenta e cinco dias hospedarão os milhões que se deslocarão até esta cidade sagrada.

O espírito de todos reunir-se-á acordando a união deste momento transformando-o na maior de todas as congregações humanas.

Transformar-se-ão em silêncio, em coisa nenhuma, em esperança e meditarão nas profundezas da terra. O Ganges e o Yamuna são os irmãos mais visitados em todo o Mundo por estes dias. Luzes transformam noites em dias, barcos invadem as águas sagradas e tudo se transforma com as tonalidades violetas do entardecer. Chega a noite, ninguém dorme, ninguém descansa, os Shadus tomam de assalto as margens do rio sagrado e a maior de todas as procissões irá ter lugar na manhã do novo dia. As ruas animam-se com sons, danças, grupos de peregrinos aos milhares que se deslocam a pé, outros a cavalo e outros de elefante.

Quero banhar-me no Sangam do Ganges, do Yamuna e Saraswasti, purificar-me e ganhar a imortalidade ao beber do sagrado néctar amrit.

- “Har Har Gange” – que viva eternamente o grande rio sagrado que me lava e purifica, absolve os meus pecados e presta auxílio na minha reencarnação. As cinzas vestem-me, cobrem-me o corpo que já não me pertence, escondido na neblina e fustigado pelos gelados ventos da manhã, procuro o meu lugar dentro de ti. No início senti frio mas ao mergulhar de novo o frio desapareceu. Vestiste-me com pureza, bom auspício e imortalidade.

Nada em vida se compara a tão grandiosa comemoração. Oferecemos incensos e flores ao grande rio sagrado, banhamo-nos nas tuas águas e procuramos em ti a paz esquecida nos momentos de todos os dias. O planeta aqui é outro, todos vivemos no coração uns dos outros e em todo o lado. O laranja cobre o corpo dos shadus, dos peregrinos e dos animais que transportam os peregrinos. Os banhos sagrados irão continuar até ao fim das festividades. As pontes sobre as margens do Ganges e do Yamuna serão atravessadas vezes infinitas, vozes elevam-se aos céus. Multidões convergem durante a noite para junto das margens do rio sagrado iluminados pelas luzes artificiais como fantasmas. Os corpos pintados de cinza avançam na direcção das águas purificadoras que os libertarão, os reencarnarão e lhes devolverão o poder da imortalidade guardada na antiga khumba onde o néctar amrita descansava.

Cobre o meu corpo de cinzas, medita na minha companhia nas margens do Ganges, levanta os braços em direcção aos céus celebrando Indra, celebrando Vishnu, honrando a glória dos deuses que tudo protegem, que tudo honram e que tudo amam e dos quais, como nas histórias, todos fazemos parte. Levantam-se as poeiras das margens que se acalmam ao entrarem nas águas dos rios sagrados. Celebra-se com danças, cantos, preces e meditações. O rio transforma-se num formigueiro desconexo com peregrinos a perder de vista. Os vedas são recitados e com eles partes da primeira história. As pontes são como cobras estendidas entre as margens. Servem de ligação aos mais de sessenta milhões desta congregação de quarenta e cinco dias do Ardh Khumb Mela.

Centenas de campos de peregrinos foram montadas de acordo com as comunidades que neles respiram. A comida é-lhes servida e escutam os seus Swami, cantam e dançam e meditam e são. A verdade é ensinada pelos yogis, pelos mestres e gurus que nos transformam como nos transformou a palavra de Buda. De onde vem a paz, o silêncio e o amor verdadeiro? Não surgem dos conflitos, das guerras sem sentido, das lutas pelos diferentes poderes perseguidos pelos homens. Não se adquirem por materiais riquezas pois o verdadeiro amor chega coberto pelo silêncio.

Um silêncio, uma quietude e uma esperança.

Onde existe o silêncio encontra-se a magia da verdade, encontra-se a história primeira, arquivada no centro de quem verdadeiramente somos, como no coração da primeira de todas as pedras. As histórias são contadas através de cantigas e de cânticos, ampliadas pelos ventos que as transportam através das neblinas temperadas com os odores de todas as refeições.

Transformei-me em sadhu com apenas doze anos. Quem se recorda verdadeiramente com aconteceram as coisas com essa tenra idade? Não sei da minha família, quem sou e a quem pertenço. Tenho sessenta anos de idade e trago o meu braço direito levantado por anos incontáveis nesta venerada posição. O único poder que o mantém assim erguido é o da minha vontade que com ele vai crescendo.

O lado iluminado da lua ilumina os caminhos dos peregrinos. O sol nasce, a névoa da manhã cobre os rios sagrados e a cobra-ponte continua a alimentar as margens com as multidões, com os seus ruídos, odores, cheiros, perfumes, cânticos, com buzinas e com todos os outros sons menos o som dos silêncios.

As lamas invadem os recintos sagrados do festival. Os viajantes continuam a banhar-se junto à confluência sagrada do Ganges com o Yamuna, continuam na busca da verdade, uma verdade que esperam aqui encontrar mascarada no néctar sagrado, mascarada com as cores da imortalidade que aqui veio desaguar.

Desejam a verdade e deixam para trás outras opções de vida. Transformaram-se em sadhus, em yogis, em gurus, em outros mestres divinos. Anseiam alcançar esse supremo grau de consciência mas não estão verdadeiramente preparados para atingir esse patamar de suprema justeza. Quanto mais o desejam maior será o preço a pagar pelo desejo e maiores as renúncias e o abandono.

As campainhas e as canções continuam a perpetuar os dias e as noites do festival. Seguem-se os banhos sagrados no rio que é a nossa mãe, o nosso néctar. Louvá-lo cantando dentro dele as mantras sagradas.

Se os corações não forem puros nunca seremos transformados e a alma permanecerá para sempre igual ao que já foi.

A nossa vida pertence ao grande rio sagrado, aqui em Allahabad nos voltamos a reencontrar.

Oferecemos-te tudo aquilo que a nós desejaste consagrar.

.