MOMENTOS
Um momento
um repouso
um sonho
uma ilusão
uma pétala salgada
um pedaço de livro
um abraço
uma paixão
a dor de não te ver
o medo de te perder
a angustia de perceber
a rapidez com que tudo vai
com que tudo segue
com que se engole
e perde o momento
vezes e vezes e vezes
sem conta
vezes e vezes e vezes
a mais
até cair como pétala salgada
seca
na palma da tua mão
5 de Abril 2011
O dia começou luminoso, ensolarado, quente. Desdobrei o jornal apenas para sentir o pulsar das realidades pelos olhos de quem ali as escreve. As coisas não andam famosas. Os vidros conseguem fazer com que a luz que os atravessa vá aquecendo a mesa do café, as almas dos que ali se entretêm nas leituras, principalmente nas leituras. O Mundo tem andado equivocado estes últimos meses, estes últimos anos, diria mesmo. As pontes que fazem ligação entre as várias margens dos rios que atravessam são de difícil manutenção. Os engenheiros que têm vindo a substituir os que anteriormente tinham funções de guardiões dessas estruturas metálicas são mais novos, mais inexperientes e menos dotados de carácter e de responsabilidade. As novas gerações parece terem pouca vontade em entender a história, em compreender as suas lições, as mensagens escondidas nas entrelinhas dos acontecimentos passados. O choque é depois violento. As situações caóticas vão-se repetindo, umas atrás de outras, sem que o elemento humano mais isolado, aquele a quem legitimamente ainda chamam “pessoa”, sinta que a sua intervenção ajude ou altere significativamente este estado de coisas. Os mais idosos vão colocando a mão na testa e de óculos bem semeados, arquitectados no centro dos sábios rostos, tentam entender os códigos encriptados dos textos que vão lendo para saírem salvos de mais uma manhã. Os estrangeiros olham para tudo isto com estranheza enquanto bebem o nosso café com leite, o típico galão, e de chinelos no pé e roupas frescas se deliciam com o nosso clima que tanta inveja lhes causa e que quase nem apreciamos por estupidez.
Colamos as orelhas a telemóveis, o rosto aos ecrãs, aos mais variados ecrãs, desligados do sol da luz e das paixões.
Que momentos são estes, afinal, que nós vivemos? Olhamos e não vemos, sentimos sem verdadeiramente nos tocarmos e deixámos definitivamente de tentar encontrar a solução para uma das mais importantes dúvidas que nos atormentam. Qual o momento, qual o momento mais importante de toda a nossa vida? E qual será o mais importante de todos os momentos de nossas vidas? Aquele em que nascemos? Este exacto momento em que respiramos? Aquele outro em que fomos mais felizes do que nunca? Aquele que ainda está por acontecer pois não recordamos nenhum momento suficientemente importante para mencionar? Aquele em que morreremos pois a eterna dúvida sobre o que está para lá desse “momento” será definitivamente respondida? O momento em que me colocaram o primeiro filho nos braços e os nossos olhos se tocaram essa primeira e mágica vez? O momento em que o segundo filho repousava junto á cama da mãe heróica com prendas escondidas para adocicar o irmão mais velho? O momento em que sobrevivi? O momento em que resolvi escrever e deixar acontecer todas as histórias e “momentos” que trazia escondidos em mim? O momento em que deixamos de ter receio de todos os momentos e só acreditamos na verdade porque se assim não for, não existem os momentos? O momento primeiro em que começamos a recordar? O momento em que nos recordamos do que ainda está por acontecer? O momento em que, finalmente, a paz veio para ficar? O momento em que fizemos amor pela primeira vez? O momento em que descobrimos como nascem as crianças? O momento primeiro e o último de todos os momentos e todos os momentos intermédios?
Difícil será recordar todos os momentos. A pressa, a velocidade dos dias, os dias que passam sempre com a mesma agitada velocidade.
O momento em que o Mundo se transforma e desaba e a onda tudo engole? O momento do silêncio em que nos deitamos a descansar? O momento milagroso das manhãs ao despertarmos para mais um dia milagroso? O momento do primeiro beijo? O momento da primeira de muitas noites sem dormir? O momento em que descobrimos quem somos e para que nascemos? O momento em que sabemos que estrada percorrer? O momento em que nos deixamos mergulhar nas doces águas à procura de silêncio e da leveza esquecida? O momento em que nos pegaram ao colo pela primeira vez? O momento em que nos encontraram e deixámos de estar sós? O momento em que todos passaremos a falar e a entender uma só linguagem? O momento em que muitas doenças serão vencidas e viveremos um século de esperança? O momento em que percebemos qual a verdadeira dimensão do nosso planeta? O momento em que entendemos minimamente a verdadeira dimensão do Universo? O momento em que iremos perceber que este, afinal, é apenas mais um de muitos outros universos igualmente infinitos e enigmáticos? O momento em que aprendemos a apreciar a frescura amarga da cerveja? O momento em que tudo voltou a ser como era antes? O momento irrepetível em que fomos campeões aquela primeira vez? O momento da estreia da primeira peça de teatro? O momento em que sabia que era assim que iria acontecer? O momento em que alguma coisa me disse que ainda não seria ali o momento para me despedir? O momento em que fugimos do médico por ter medo das vacinas? O momento em que descobrimos que o pai Natal tem um nome e uma cara tão familiar?
O momento em que o palhaço do circo nos assusta de morte? O momento em que saímos vivos do acidente de automóvel e tudo passa a ser diferente e com outras cores? O momento em que nos esquecemos dos acidentes? O momento em que desejaríamos que todos os maus momentos não tivessem existido? O momento do primeiro sonho divino? O momento divino em que o primeiro sonho se transformou? O momento em que sentimos a luz e a verdade em forma de dor? O momento em que a vida nos diz para ser vivida, nada mais? O momento em que a onda beija a areia ao pôr-do-sol. O momento em que a água transparente do rio deixa ver o peixe fazer cócegas nos pés enquerquilhados? O momento em que deixamos de ter medo do escuro? O momento em que estamos todos juntos à mesa no almoço de domingo? O momento em que viajamos por terras desconhecidas? O momento em que sentimos prazer em estar sozinhos? O momento em que desejamos ser mais velhos? O momento em que desejamos que o tempo fique para sempre congelado nesse momento? O momento em que desejamos voltar atrás ao que tivemos? O momento em que adiramos o sol e a chuva ao mesmo tempo? O momento em que resolvemos meditar sobre todos os momentos? O momento em que a alma se derrete e se funde com a outra? O momento em que descobrimos o prazer da descoberta? O momento em que terminamos o primeiro livro? O momento em que terminamos a leitura do primeiro livro? O momento em que criamos? O momento em que somos quem verdadeiramente somos o momento da paixão de respirar? O momento em que percebemos que temos de apreciar, de amar, de desacelerar e de oferecer? O momento de entender o tempo? O momento em que aprendemos a lidar com o tempo? O momento em que conseguimos fazer saltar o seixo vezes sem conta nas águas do rio? Qual momento?
11 de Abril de 2011
Enquanto tantos momentos fluem para paralelas e ilógicas lembranças onde as organizações misteriosas da mente as cozinham, os dias passam e os minutos carregam-nos com o seu peso e o tempo mantém a sua impiedosa direcção. Hoje o sol acordou com prazer, o céu azul desvendou-se e isso, só por si, faria toda a diferença. Aos cantos do planeta não descansam as nuvens. Acordam para mais um dia e isso, só por si, faria toda a diferença. Desci mais uma vez à rua que se move ao ritmo deste sol matinal, como um sumo ou um rio do qual somos corrente, somos seiva, somos parte deste todo. Tudo ganha vida própria, como num sonho, como um desvio que procura aventuras, que tenta fugir do caminho, da certeza – mas é tudo sempre tão assim.
Caminho
Descida
Avanços e recuos
Semente de destino
Um desfile de sonhos
Cantos na planície
Recuos
Uma flor cinzenta
Que não pica nem desmaia
Um homem só
Uma paisagem
E o rio
O perpétuo rio
Avança
Desce e recua
E semeia
Quando o meu amigo saltou a minha mão saltou do peito com medo que se magoasse. Os meus olhos preferem descansar com receio de actos perigosos, dos altos e baixos, das quedas, dos precipícios.
Aguardei pela visita da lua mesmo com o dia tão claro. Aguardei pela visita do mar, aguardei pela chegada da esperança e do azul, do vermelho e do quente laranja. Aguardei pelo verde, pelo lilás, pelo branco e pelo amarelo forte e luminoso. Aguardei pelo teu sorriso, pelo teu calor, pelo convento reconstruído, pela amizade perdida, pelo sonho e pela esperança.
Falei com os pesadelos mas a voz não saía. Chovia de forma impiedosa como se o céu não pudesse mais esperar. A queda desta água inundou todo o recinto. Os espaços ficaram frescos e escuros. Caí com medo, caí mais uma vez com medo que tudo desaparecesse. Num só instante vi avançar os negros e as pesadas nuvens a cair céu abaixo. Liguei o telemóvel para confirmar que tudo estava bem, que nada de mal tinha acontecido. A chuva continuava a cair, precipitada com trovões e clarões que iluminavam o céu e tapavam as estrelas.
Desce
Cai pelo céu
Desvia o sol e as estrelas
Desce o cinzento
E o agreste
E o azul desviou-se
Desce a cantar com a fúria
Com o ruído tormentoso a respirar
Com o sorriso apagado
Desce sem sabor a fruta
Desce sem piedade
Desce sem destino
Fala com o peso dos azuis-escuros
Os que assim transformou
Os que assim queimou
E os demónios dançaram
E os anjos fugiram por instantes
E os pássaros resolveram abalar
Migrar para parte incerta
Enquanto o mar salgado
Desaba desta forma
Pelos redondos cantos da terra
Nada mais me resta fazer
Senão esperar
Momentos
em que se preza a vida
em que o sol se esconde
no teu regaço
partes de mim
submergem
ressurgem
pedem pelo sabor da voz
timbre de luz
caminhos escondidos
momentos
histórias
moribundas palavras
secas
perdidas
rasgam o chão que piso
lavram dores
colhem queixumes
por estes caminhos escondidos
momentos
subiu o sol
subiram as estrelas
moribundas estrelas
a chover à luz
caminham escondidas
colhem sal
espuma e ventos
por estes
caminhos escondidos
momentos
Destas novas imagens salta imediatamente o sabor ácido de uma certa nostalgia, um clima de alguma destemperança, um nervosismo inquieto e impulsivo. Não nasceu ainda por aqui nenhuma história, nenhum pulsar. Saltaram as palavras para estas folhas muito livres, como crianças. A liberdade que lhes permiti, como todas as liberdades, podem aventurar-se por momentos menos inspirados, quiçá surreais, demasiado estranhos para uma imediata compreensão.
11 de Abril 2011 – tarde
Momentos: Silêncios,bocas que se abrem e resolvem não cantar
Cantar com silêncios, com dimensões inexploradas.
O dia tinha acordado cinzento, como foi sonhado
Um cinzento claro
Um aventureiro tom
Um desmentido
A luz na cidade permanece forte
Quente, por sobre os pedaços
A solidão desmente
O corpo sofre
A rotina que perdura
Queima os ossos
Esfola os restos que permanecem encerrados
Neste momento
Os restantes dias obrigam a ponderar os actos, as acções que irão prevalecer antes de todas as outras. O pequeno e resistente rapaz repetia vezes e vezes sem conta os mesmos gestos. De forma mecânica serpenteava no meio dos pequenos pedaços do dilúvio. Encharcado até aos ossos não sente a humidade, não sente o ar pesado e mal respira, mal avança nesta distracção, nesta ausência. Derrete nas mãos o sal das águas, a lavagem que dificilmente se distingue das gotas doces que descem dos céus há meses e meses sem parar. Invisível ao próprio, o rapaz remexe, investiga, avança descalço pelo desalinho, pela barafunda e confusão. Os imprevistos não o abalam, são engolidos pela nuvem cinza que tudo derrete.
Amanheceu e tudo se repete sem constar na memória do rapaz como se esta fosse a primeira de todas as manhãs. Reforça a protecção para que a doença dos dias não suba por ele, não o cubra de tédio, sofrimento e dor.
Desgosto. Um desgosto moribundo, um desalento, um destino tão pesado quanto trágico e a morte sempre morna a aconchegar a vontade como uma bênção. Nada se altera, imutável até ao esqueleto do desaparecimento.
Momento
Repetir o desenho
Desalento húmido salgado
Destino atroz
Semeado numa imensa dor
Que destrói a voz
Momento triste
Destroço as horas e o tempo
Reencaminho os horizontes
Acampados no meio da terra
Da chuva
Dos ossos negros
As garças deslizam no lago misterioso
Células de vida
Músculos de cor
Momento de pausa em tanta [chuva] dor
Promovem um sentimento
Uma esperança
Outro momento
Todos os projectos saltam
Como pássaros perdidos
Sem data prevista
Para migrar
Para sentir
Outro momento
Apenas a palavra, apenas o sal. O caminho foi ligeiramente aberto, salvaguardada ficou a nobreza dos actos, de sobrevivência, de luz, de ténue luz. referiu que nada mais havia para experimentar. O salto que deu foi ousado. Queria fugir do que não consegue. O desespero tomou conta do rapaz que ia fugindo descalço pelos campos de lixo, pela destruição infinita da paisagem semeada de detritos. Queria mais uma vez ser garça, como elas migrar, desaparecer nos céus até ao infinito, sonho de asas cor-de-rosa. Permitiu-se um ligeiro mimo neste agitado festivo voo. Destruiu-se e correu os campos sujos com uma rapidez incomparável. Ceder ao caminho, ao levantar das asas até que o rapaz-pássaro se sinta só lá no alto azul, sem penas. Descobrir as vistas, descobrir os avanços e os recuos com os sonhos que nunca terá. Corre, corre, corre até lhe sangrarem os pés e as pernas e os joelhos. Ao descanso não resiste, não tem pétalas que o destrocem que o rasguem ou o alimentem. Não sente mais nada, só desejo de ser garça.
Momento de ser garça
Voar, migrar
Desaparecer
Cantar no céu cinzento
Azul no momento de bater as asas
No momento de deixar cair
Os pés
As pernas
Os joelhos feitos de sangue
Num momento
Num instante
12 de Abril de 2011
O mais que se pode desejar em mais um dia é que seja sempre melhor do que aquele que já passou.
Sugerir mudanças, pensar a vida de maneira a que os momentos sejam únicos, sejam mais memoráveis que os anteriores
Sugerir segredos
Sugerir unidade
Sugerir vontade
Descendência momentânea de silêncios
Discordar do silêncio
Discordar dos medos
Discordar das mudanças
Momentos
Segui o rumo da aldeia perdida
Descoberta na solidez das pedras
Do granito e da urze
Dos momentos de silêncio
Ergue-se viva na paisagem
Escondida
Derrete a geada
Refresca o solo e a erva agradecida
Deriva o sol e a nuvem e o vento
Desde sempre
Desde que o agradecimento dura
Como as rochas
As montanhas e as serras vivas
Deixei seguir o riacho
Seguir a alegria da gravidade
E as sementes
E os olhos das águias
E dos açores
Dos pássaros do sul
Dos luminosos ares que vestem a paisagem
Até onde a vista alcança
Até ao norte, ao este e ao oeste
Momentos ímpares de silêncio
Do segredo dos silêncios
Da pedra segura
Firme
Eterna
Derrete e descobre, e o rapaz-pássaro vem assim, desde que o alimento escasseia - desde que o sumo dos frutos, das marés dos oceanos e da espuma das ondas se entretém a beijar a areia na praia – descendo das nuvens ziguezagueando pelas copas das árvores.
Os pés, as pernas e os joelhos, as luzes que atravessam o caminho das folhas e dos troncos e dos ramos.
Passeio ou descoberta? O rapaz voador significa para os outros pássaros a diferença, a ilusão. Algum desalinho na direcção, pela surpresa, a estranheza carregada pelo surgimento de novo pássaro. O caminho do bando muda de acordo com os ventos e os créditos e a direcção dos destinos. O rapaz-pássaro não lhes pertence. Passou pelas garças como se fosse invisível. As mãos derretidas, transforma o som, transforma a ligeireza com que o voo aconteceu desde o princípio da subida.
Quantos mais rapazes-pássaro subirão ao céu e ás estrelas? Quantos ludibriarão as forças implacáveis do destino, derrotando o medo e a frustração?
Dentro do suspiro
Relembro além o momento
O som do carrossel
Do cavalo rodopiante
Musical
Festivo
A janela aberta
Entra pelo ar o som
O quarto recebe a espuma
O tempo
A ilusão da festa
De calor
Crescer é impossível
Não se imagina
As grades mantêm segura a criança deslumbrada
Atenta
O cheiro do cavalo rodopiante
Musica
Festivo
Atravessa o bairro
Cai como doce onde devia
No rosto iluminado
Da criança deslumbrada
Atenta
E o suspiro agora é outro
Carregado
Vestido com a manta pesada
Da ilusão do tempo
Passado
Que voou
Num só momento
A tarde agora aquece o céu, o campo, o dia, as nuvens e as estrelas. Descreve um arco imenso na paisagem, no horizonte que se esbate. As garças desaparecem e o rapaz-pássaro rodopia feliz deixando atrás de si invisíveis linhas desenhadas nas páginas virgem das nuvens do entardecer. Não quer colocar de novo o corpo no chão ingrato, não quer perder as asas, o sonho e a leveza. Quer o mar, o salgado a pentear-lhe o corpo cansado e tão jovem. O cansaço fica a dever às pedras, ao pavimento, aos avanços e recuos do corpo que dele se levantou. A cidade disforme, agreste, suja e doente, clamava pelo corpo perdido, pelo corpo que dela abalou sem aviso, num acto desconsiderado.
As montanhas paridas do lixo onde as vidas perdidas se amontoam na procura, caem na miragem desenhada pelo calor do continente indiano que transforma seres humanos em sombras, cadáveres vivos de solidão, de infernal perpétua solidão. As certezas caíram por terra, caíram como a chuva das monções, como o calor que se entranha nos corpos e nas almas e nos rostos invisíveis de quem caminha na montanha gigante construída por detritos, por toneladas incontáveis de detritos, destroços, lixo que se perpetua até ao final dos dias e das noites neste lugar.
Momentos
Onde param os rapazes-pássaro
Voei desorientado
Perdi os pés
As pernas
Os joelhos
Transformados em esperança
Sem sucesso
Perdidos no voo
Sem controlar o destino
Sem controlar a dor
Perdida nos altos e baixos
Nos baixios lamacentos
Nas pétalas
A doce luz da esperança
Apagada no receio das garças
Com medo do novo ser
Com receio do despojo
Da guerra que não tem razão
Para acontecer
O rapaz-pássaro
Perdido na luz do horizonte
Desce ao pavimento
Recebe os pés salgados
Neste momento
26 de Abril de 2011
Os tempos continuam sombrios. A água seria uma bênção. O vento faz bailar as copas das árvores e o ar primaveril contrasta com o tom cinzento e melancólico da alma do rapaz-pássaro. Vagueia sem brilho no olhar, ausente, quase perdido. Recorda o voo recente e é tudo o que consegue. A fome cansou-o, consome de tal forma o seu ser que já não lhe liga. Sobe os muitos degraus de uma avenida apinhada de pessoas fantasma, como se fosse ele próprio um fantasma. Caminha no sentido inverso da multidão que o empurra e atrapalha, que lhe barra o caminho e o faz recuar. De cabeça baixa continua a lutar contra essa maré humana que o vai violentando e ferindo. Aos poucos e poucos consegue subir a imensa escadaria que o leva até ao cimo da avenida. Lá do alto continuam a avançar autênticas hordas de anónimos que como um animal enfurecido seguem as pisadas mecânicas dos que os antecedem rumo ás margens apinhadas do Ganges. O que se vislumbra daqui é único. O rio sagrado está vivo, é um animal autêntico que recebe os milhares que desceram até si em busca da purificação abençoada. Em êxtase recebem no corpo a frescura e transformam-se no rio, transformam-se na miragem e na paisagem por um instante, derretem-se em delírio para renascerem e acreditarem no milagre da vida, na crença em que uma qualquer transformação lhes traga o que mais ambicionam e lhes possa fazer chegar uma pequena partícula de felicidade. O rapaz-pássaro permanece imóvel no alto da grande escadaria a observar o cenário. O rosto fechado e o silêncio moram nas suas lembranças. Empurrado pela multidão, acaba arrastado pela rua abaixo sem desejar. Desta vez não consegue obter as forças necessárias para evitar que tal aconteça e nessa viagem rumo ao Ganges deixou de sentir o chão debaixo dos pés. O corpo leve do rapaz-pássaro foi erguido por três anciões de grandes barbas e cabelos longos que o salvaram das violentas joelhadas e cotoveladas que o iam marcando e ferindo e quase matando. Fechou os olhos e por breves instantes voltou a imaginar-se no meio das nuvens do entardecer a fazer companhia às garças e ao sol. O rio sagrado estava preparado para o receber, como às luzes, como aos desejos, como às preces e às vontades de mudança, como às centenas de milhares de vidas solitárias que aqui vieram comungar e receber em paz as purificadoras águas do grande Ganges. Ao mergulhar o corpo nas águas do rio a memória voltou, as portas abriram-se de novo às sensações e o estômago recebeu sem querer a mesma água que lhe cobria todo o corpo. Perdido algures entre a escuridão do momento e o medo da morte por afogamento, ergueu-se com todas as forças do fundo do Ganges com os braços-asas abertos em direcção ao céu. Abriu a boca e tossiu a água que lhe começava a ameaçar os pulmões fazendo-se escutar em toda a Índia. Anunciou assim esta espécie de renascimento forçado que acontece de forma inesperada, totalmente oposta à de todos os outros que ali se encontram. Ninguém notou o seu grito, a sua aflição e a sua angústia. Os três anciões que o salvaram da multidão tinham desaparecido na corrente do rio como tantos outros. Uma criança de olhos negros como a mais escura das noites parece ser a única criatura ali presente que deu conta do grito de dor e alívio do rapaz pássaro. Olha para ele com um sorriso doce, puro, e repete por três vezes a tosse que lhe escutou. O rapaz-pássaro olha para a menina e esquece a dor no peito, esquece a voz rouca e cansada, esquece o momento sombrio e esquece a fome que o cansa. A menina voltou a tossir por três vezes e aponta na direcção da lua que já se pendurou nos céus. Aponta em direcção à única nuvem que lhe faz companhia e volta a sorrir docemente para o rosto perdido e molhado do rapaz pássaro. O Ganges permanece sereno. O olhar das garças deseja o céu e as estrelas e querem voltar a voar para bem longe daquele instante. Desejam sair de uma vez por todas para bem longe daquela loucura, desejam voar velozes para encontrar, sem pressas, mas com certeza, um novo momento.
A menina de olhos negros
Princesa do Ganges
Pétala escura de flor solitária
Relembra ao menino-pássaro a dor
Dá-lhe a novidade nas margens
Do rio sagrado
A amizade
Como um poema desconhecido
Como as águas do grande rio sagrado
É uma ilusão
É um voo
Um momento
Um instante com o valor mágico
Do maior segredo
E as garças acabam por subir ao céu
Voam bailando ao entardecer
Agarram com vigor essa vontade
Essa louca vontade
Serem livres
Viver
Esse momento
26 de Abril de 2011
Da poeira as estrelas fazem a sua casa, dali observam, dali se entretêm como rainhas da escuridão. Entre elas o vazio e os planetas náufragos. Entre elas conspiram em segredo, entre elas e a menina princesa do Ganges, outrora estrela solitária que resolveu obedecer a uma insondável vontade ancestral e desceu ao planeta azul dos homens adormecidos. No meio da multidão de peregrinos encontra o menino-pássaro, o menino perdido e solitário. Encontra o menino perdido pelos homens e que ama todos os pássaros do céu e em especial as suas garças. O silêncio é o aliado dos encontros improváveis. Os primeiros momentos em que seus olhos se tocaram foram embrulhados em mantos de silêncio, em artísticos misteriosos mantos de silêncio. Todas as músicas podem nascer do útero destes silêncios, sem atrasos, numa actividade milenar que perpetua estes marcos luminosos e que transformam qualquer universo com este dom. O vento responde à menina de olhos negros e atira na sua direcção o leve menino-pássaro que a agarra instintivamente para não cair. As águas do imenso Ganges observam o abraço das crianças com orgulho paternal.
28 de Abril de 2011
Assistir deste lado dos ventos aos delicados caminhos, acessos laterais e volumosos com chamas que hesitam em queimar, em destruir. A velhice ameaça ao de longe, aflige os humanos que se incomodam com estas histórias que semeiam assim aos sete ventos. Os grupos de anciões sensatos, indignados com a ofensa desta qualidade que constrói o carácter dos seres, reúnem as suas sabedorias para resolver a situação. O rapaz-pássaro, alheio a todas estas complexas realidades, vai fazendo de conta que o preto não existe. Não existe o mar, não existe a floresta, o firmamento e as estrelas. Não existe a lua, o sol e a força do vento pensador. Não existe a unidade nem a diferença, não existe a dor, o divertimento, a solidão e o cansaço. Nada disso existe. As lâminas que cortam o tempo e o carácter dos seres continuam afiadas, terrivelmente cortantes. São constantes as chamadas para que actuem de forma implacável contra todas as contestações. As respostas surgem decisivas e nada mais resta ao rapaz pássaro que voltar a fugir, abalar dali para fora num instante, num rápido e fogoso momento.
29 de Abril de 2011
O limite deste momento afirma
Não ao egoísmo
Que coloca tudo aqui
Seguindo a lista
onde tudo começou
O objectivo é cortar a pedra
Colocar criteriosamente sobre a primeira
Sobre a segunda
Sobre a penúltima
Responder ao abalo do monte brilhante
Com o dom da poderosa razão
Partilhar a vontade serena
De voltar a embrulhar a construção
Pedra sobre pedra
Sobra a segunda
Sobra a penúltima
Destruir criteriosamente a primeira
Como uma metáfora
Onde não há limites
Para tudo retirar
Não importa o dia
Nem a hora
Seguindo a lista
Onde tudo terminou
Com todos a bordo
O barco balança
Obedece às vontades dos anciões sensatos
Que respondem ao abalo do monte brilhante
Resolvendo a situação
Num rápido e fogoso momento
Seguindo a lista
Onde tudo começou
Falta retirar cinco prisioneiros dos escombros. Viviam dentro das pedras, viviam escondidos como os dedos fraternos de uma mão. O rapaz pássaro escutou esta história com atenção e agora recorda o momento em que foi marcado no braço direito com uma cor azul, como os companheiros desesperados que viviam enclausurados no coração das pedras. Quatro prisioneiros foram marcados no braço com a mesma marca azul, um trunfo poderoso, um trunfo secreto que lhes permitia parar o tempo para aliviar o sofrimento, o desespero e a solidão. Apenas um dos prisioneiros ficou por marcar nesta ilusão. Fosse qual fosse a sua vontade nunca poderá usar a marca para parar o tempo. Teria de ser mais discreto que os companheiros para vencer os desafios da desgraça e mesmo que os consiga decifrar não conseguirá lutar contra o invisível poder das pedras. Procurou os companheiros no escuro. Num esforço mal equacionado tombou pelas pedras abaixo, partindo as pernas, os braços, as costelas e todas as peças importantes que lhe davam alento ao corpo e vida às vontades da mente. Tentou pedir auxílio aos companheiros. Queria que dessem uso ao trunfo secreto e assim lhe providenciassem ajuda para aguentar tamanha falta de sorte. O rapaz-pássaro recordou tudo ao acordar. Olhou para cima para a montanha perdida construída de milhares de pedaços de pedras. Experimentou gritar pelos companheiros de desgraça. Ninguém respondeu. Num último esforço voltou a lutar com todas as forças. Não era aquela a altura para se deixar derrotar. As pedras afastavam-se o alto da imensa montanha. As mãos dos quatro prisioneiros abriram uma pequena escotilha por onde a luz passou. Viram o rapaz-pássaro caído no fundo escuro e distante. Exausto, com as pernas, os braços e as costelas partidas o desafio era conseguirem usar o poder para lhe aliviar o sofrimento. Por agora nada mais resta ao rapaz-pássaro. Espera pela ajuda dos companheiros que começaram a transformar a distância num projecto esperançoso de heróica salvação.
A menina preciosa do Ganges virá para te salvar. O seu sorriso é a arma mais poderosa alguma vez construída e ela é tua amiga.
Esquece as fraquezas, esquece a dor imensa dos ossos quebrados, das mágoas e da solidão. Esquece todos os momentos cruéis por que passaste. Esquece a fraqueza, o ódio, o frio, e nunca terás medo como outrora, nunca terás receio, pavor, nem transpirarás gotas amargas de suores ensanguentados. A maldade deixará de te chicotear as feridas mal saradas. A violência e as lamas cansadas das margens do rio sagrado acabarão por se transformar em misteriosas aliadas. Todos os seres acabarão por se apaixonar e a tua amiga princesa do Ganges abrirá as mãos e o teu coração conhecerá o amor e o poder infinito da esperança.
O rapaz-pássaro ainda não acordou depois da queda. Recorda nesse sono a história que lhe foi contada. A história dos prisioneiros escondidos que viviam dentro do coração da montanha de pedra. Dos prisioneiros que viviam dentro das próprias pedras. Ainda não acordou mas já sabe que nessa história a maior das angústias era ser ele um dos prisioneiros perdidos das celas de pedra. Como uma miragem, eis que lhe surge novamente o olhar negro e profundo da menina princesa do Ganges. Com a delicadeza de uma deusa Hindú, marcou-lhe no braço partido a marca azul e imediatamente o menino-pássaro serenou.
Segredo
Partilharás com esta marca sagrada
A esperança
Deixarás de sentir
Voarás como as garças
Se esse for o teu querer
Este azul nunca se apagará
Como o ouro
Sempre brilhará
Como a razão
Te dará claridade
Bondade
E do segredo farás história
E da história não guardarás segredo
Derreterás o ouro
Perpetuarás a esperança
A razão
O tempo delicado
E tudo farás desaparecer
Usando o poder azul
Contido na marca sagrada
Transmitido pela menina princesa do Ganges
Num momento
No exacto momento
Em que surgirá o olhar negro
Profundo
E tudo recordarás
.