quarta-feira, 29 de junho de 2011

MOMENTOS 21


28 de Junho de 2011


Relembrar as etapas, os néctares, o ar que se levanta fresco e a brisa, a madrugada, os lençóis de espuma que chegam com a maré ao amanhecer.

Rapidamente voar pelos segredos guardados pelas pedras nestes rochedos, na manhã quente de mais um dia de Verão. Domar os cumes das montanhas, desenrolar as vidas que se abrigam nas rochas e que aqui encontraram o lugar devido. Seguir o mar e as planícies e o rio pois neles está contida a peregrinação primeira e os frutos resultantes das lembranças.

Os segredos.

É deles que sobrevivemos, através deles mantemos as dúvidas sobre o que se esconde por detrás da existência, do que nos faz escrever, das recordações das histórias criadas desde a primeira e até da primeira.

Segredos.

O momento em que desvendamos o segredo, em que abrimos essa porta. Ficamos eternizados mas logo outro segredo chega para nos seduzir. Ficamos suspensos pelo maior de todos os segredos, o que em momento algum se desvendará, o que se perpetuará para sempre misterioso, o que alimenta filósofos, peregrinos de todas as humanas raças, o que nos mantém a todos suspensos por finos e frágeis fios de seda.

Lembranças. Segredos e lembranças que desaparecem misteriosamente derrotados pelo deus do tempo.

Dois corpos bailarinos dançam nos céus como garças. Envolvem-se, serpenteiam e unem-se como estátuas de sal e de suor na escuridão da madrugada. Do seu amor nascem as estrelas, suas filhas brilhantes, nascem os cometas, seus filhos aventureiros, nascem os planetas, seus filhos criativos, e nasce o tempo, o filho transformador.

Os amantes fazem do universo o berço, a cama, os lençóis, descobrem todos os segredos das suas peles, revelam enigmáticos prazeres do mais sublime êxtase, decifram os códigos impenetráveis dos seus corpos que estes mantiveram escondidos um do outro até entenderem finalmente tudo o que os une e os separa. Transformaram-se nesse instante, nesse exacto momento, e quando os corpos ganharam a dimensão da unidade o cosmos brilhou intensamente.

Outros corpos bailarinos também dançaram como garças, igualmente se envolveram e serpentearam como estátuas de sal e de suor e pela escuridão da madrugada fizeram luz.

Os braços envolvem o corpo, escondem-se nas ancas abençoadas, descem afagando as coxas, as pernas, os pés, regressam pelo mesmo caminho detendo-se junto ao ventre onde o rosto descansa, se demora pela eternidade de um beijo, beijo que descobre o sexo vibrante, perpetuando o tempo do segredo acabado de desvendar. Regressam a casa, apoiam-se nos seios da bailarina, passeiam pelos mamilos perfumados de jasmim, avançam pela estrada desenhada nas clavículas até aos ombros que passam agora a segurar. Os dedos derivam pelo rosto da princesa bailarina, desenham os contornos dos lábios, do queixo, do nariz, como se os desejassem ter esculpido, segredam aos ouvidos palavras quentes, ternas e eternas, os olhos da amante abrem-se, ao pedido que fazem é dado cumprimento e os dois bailarinos envolvem-se, unem-se, decifram os códigos impenetráveis de seus corpos, meditam como garças e falcões neste momento.

Segredos.

Fazem-nos sobreviver.

O maior de todos esconde-se em quem não somos mas necessitamos conhecer. As palavras desaparecem, os néctares, as emoções, os sabores e todas as fragrâncias se transformaram para se misturarem com o sal e o suor que nos pertencem.

A pele, os ossos, todo o corpo deriva separando-se do segredo e deixando-nos apenas as histórias que passaremos a contar. Serão acrescentadas à primeira.

Ao desvendarem o importante segredo, os bailarinos eternizaram o universo, as galáxias e os ciclones coloridos que foram desenhados na palma da tua mão. O sagrado bailado resultante da sua união, fruto da mais nobre e doce das paixões, dará origem às estrelas, aos cometas, aos planetas e ao tempo transformador.


Segredos

Fazem-nos sobreviver

Seduzem

Quando os desvendamos

Por finos e frágeis fios de seda


O universo é a cama

E os lençóis

Dos amantes bailarinos

Que descobrem todos os segredos


Em sublime êxtase

Decifram os códigos impenetráveis

Dos seus corpos

Ganham a dimensão da unidade

Nesse momento


São garças

E são falcões


Segredos

Fazem-nos sobreviver

Desaparecem com as palavras

E a pele

Os ossos

Todo o corpo

Separam-se do segredo

Que os bailarinos amantes

Acabaram por eternizar

Nesse momento

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domingo, 26 de junho de 2011

MOMENTOS 20


22 de Junho de 2011


Não existem portas, escadas, só janelas.

Não existem ruas, becos ou vielas apertadas.

Aqui não se sabe onde começa e acaba o espaço de cada um.

As montanhas estão ocas. Dentro delas, como um imenso formigueiro humano, navegam os habitantes destas cidades perdidas sem que ninguém do exterior perceba vida neste lugar.

Aos poucos e poucos juntam-se às dezenas, depois centenas, depois milhares. A minha chegada foi um total mistério. Não conheciam nenhum habitante do Lado de Fora, os medos que lhes escapam pelos poros disso dão entendimento. A multidão reuniu-se para me ver. Agora, para além das crianças, toda a população destas províncias cravadas nas profundezas das pedras me veio receber. São mais os olhares receosos que os de alegria ou satisfação pois o desconhecido assim provoca.

As crianças fazem-me sinais para lhes mostrar as asas que me ajudaram a chegar. Não imagino como fazem para daqui sair ou para aqui conseguirem regressar visto não gozarem da faculdade de voar. Estão nestas ilhas criadas nas montanhas para se protegerem mas são prisioneiros da sua criação.

Terei de lhes contar todas as histórias.


23 de Junho de 2011


Momentos.

Atravessamos as pontes que nos escondem de outros para deixarmos de ser ilhas.

Serão estes os prisioneiros que habitam escondidos dentro das próprias pedras? O que construíram para os proteger, neste inóspito lugar, acabou por se transformar nas celas que os abrigam. Escuto o medo, as fraquezas, os receios e os pavores. Estes ilhéus necessitam ser libertados desta condição tal como na história dos cinco companheiros que viveram enclausurados no coração das pedras.

Se fui o quinto prisioneiro que tombou das alturas ao procurar o radioso caminho da liberdade e da verdade, se esqueci as fraquezas, a dor tremenda dos ossos quebrados, as mágoas e a solidão, foi porque consegui transformar a violência a as lamas cansadas das margens do rio sagrado em misteriosas aliadas.

Rolei, angustiado, até ao fundo do escuro precipício. O imenso sono provocado pela queda contou-me todas as histórias e também esta que me trouxe até aqui. As fraquezas, os ódios e um frio implacável marcaram as relações dos habitantes das montanhas. A miragem que os orientou continha a cor das brancas asas que nos afastaria do alto da imensa povoação. Na história do meu sono tu aparecias, misteriosa e sorridente.

-Terás de ser discreto, mais do que os teus companheiros, para conseguires vencer os desafios da desgraça. Não te será permitido decifrar nem tão pouco lutar contra o invisível poder que se esconde no coração das pedras. Elas te ajudarão, te farão alcançar a minha morada e te dirão como funciona o universo e qual a sua dimensão. Elas se transformarão e te transformarão nesse passeio, se iluminarão, com reverência abrandarão a velocidade da viagem para que as majestosas rochas possam perpetuar no infinito a vossa passagem. Elas se ligarão com essas esculturas voadoras que do cinzento ao esverdeado canal luminoso vencerão o vazio que vos separa. A viagem continuará, depois, com a mesma velocidade.

Quando acordei, de pernas, braços e costelas partidas, estava ornamentado e perfumado com bálsamos e perfumes e as crianças mais velhas colocaram-me num nobre corcel mostrando-me em festa por toda a província. Os anciões colocaram-me colares, embelezaram-me com grinaldas floridas e reforçaram-me todas as pinturas. Recuperei a cor azul índigo desde a cabeça aos pés deixando as asas com a cor natural que lhes pertencia. Dez dias de festividades terão agora o seu início, renovando-se os corações das gentes em brilho e alegria.

Esta história já me tinha sido contada. Estas histórias e a outra, que afastou os prisioneiros da clausura para uma liberdade atribulada. Com a ajuda da menina princesa do Ganges, do poder sagrado da marca azul e dos misteriosos canais do universo que o mantém em constante mutação, igual mas renovado em histórias e emoções, recordei este momento.

Terei de lhes contar que tudo começou aqui, no coração das rochas onde são prisioneiros-ilha sem o entender.

Agora medito.

Ergueram-me às suas costas e de mim bebem esta feliz vitória obtida ao deus da morte. Um dos seus, depois de uma aparatosa queda de centenas de metros pelas verticais veredas das montanhas, conseguiu sobreviver miraculosamente mantendo-se numa estática condição por mais de sete dias. Os sonhos que o mantiveram quente contaram-lhe as histórias que o trouxeram de volta. A festa durará os dez dias consagrados. As outras histórias terão de ser contadas para que não mais os prisioneiros-ilha se tentem libertar desta maneira desesperada.

Possuo a marca poderosa, a sagrada marca azul que me permite alinhavar o tempo e aqui irei permanecer.

Os jovens serão as novas pedras, como as que vivem no glaciar de Gomukh, como as que forram o leito da sua lagoa. Serão eles a memória e nenhuma tempestade os vencerá, engolirá ou destruirá.

Do alto da montanha onde habitam descerão, por vontade sua, caminharão por todos os recantos do planeta forjados como deuses. Voarão com esperança pelo meio das neblinas, pelo denso nevoeiro do rio Ganges, e farão nascer a Luz do lado de lá de todas as muralhas até que o doce da amizade se espalhe eternamente e a todos possa visitar, por um momento.


As histórias misturam-se

Cruzam-se

São muitas

São sempre a mesma


Medito

Acordo

E a viagem continua com a mesma velocidade

Esta história já me tinha sido contada

Os sonhos mantiveram-me quente

Trouxeram-me de volta aqui


Recuperei o azul índigo da cabeça aos pés

Transformarei os jovens em novas pedras

Em memória

Que nenhuma tempestade derrotará

E a amizade será espalhada

Neste momento

todos visitará


24 de Junho de 2011


Antes de tentar entender as duvidas que me aguardam, o povo das alturas perpetuará as primeiras histórias através dos dedicados dedos dos mais hábeis escrivães.

Quero que os momentos sejam sempre únicos.

A luz que penetra no coração das rochas desembrulha na vida os seus receios e castigos em formas elementares. Os sonhos de mudança, viagens por realizar, medo do desconhecido, a voracidade do deus do tempo, o desassossego, as planícies longínquas por visitar, o planalto ali tão perto, junto ao leito do rio serpente, as aves que bailam nos céus por cima da povoação, os ninhos, as conversas que a todos une aos serões, a perpétua repetição dos dias e das noites sempre iguais a viver como eremitas prisioneiros, como homens e mulheres-ilha onde só aos mais jovens parece ser permitido ousar pensar para lá das penumbras, para lá das altas veredas que os separam do mundo dos do Lado de Lá.

A minha chegada, o meu regresso, provocou alteração às rotinas. A primeira vitória foi obtida sobre os deuses do infortúnio. Os passos dos mais nobres fizeram-se escutar como nunca antes. Os trajes encheram de colorido os espaços onde antes existiam só cinzentos. Músicos alegraram os espaços públicos com as suas percussões que levaram ao transe muitos dos aldeões. O meu corpo debilitado foi transportado com alegria como troféu dessa vitória sobre os deuses do infortúnio. Não sentia dores, nem frio, e as imagens desta jubilosa festa surgiu doce no centro da neblina.

Tenho saudades tuas, da melodia da tua voz, e este momento que agora vivo é como se não fosse eu a participar na aventura. É como se fosse apenas mais uma das incontáveis histórias que habitam no coração das rochas e que me desejaste contar. Tenho saudades de te observar em silêncio entretida com o teu jogo predilecto, uma criança feliz a construir galáxias, universos, ciclones coloridos a rodopiar perfeitos na palma da tua mão. Tenho saudades das histórias que me contas, dos milhares de milhões de histórias que me ensinaste, saudades do momento em que me ofertaste esta sagrada marca azul que me salvou, não uma, não duas, não três mas todas as vezes em que eu já aconteci. Tenho saudades do próprio rio sagrado em que me transformei e tenho saudades do momento em que a essa condição renunciei, tenho saudades do vento, da chuva e das estrelas, da viagem efectuada através do tempo transportado pelas pedras da lagoa de Gomukh. Tenho saudades dos desertos, das encostas, dos céus do planalto das asas escondidas, do aroma da erva fresca, dos pastéis que coloriam até ao horizonte os seus jardins. Tenho saudades dos meteoritos gigantescos do tamanho de mil planetas onde tudo pode acontecer, saudades do sal e dos açúcares das montanhas, dos brancos eternos e da solidão. Tenho saudades de quando aprendi e recordei a primeira vez. Saudades dos passeios que tentei fazer sem asas e dos outros que com elas pratiquei. Tenho saudades do escuro e do brilho que depois dele acontecia. Saudades do tranquilo regato, do cristalino néctar, da melodia das garças e dos desenhos delicados dos falcões, dos poemas que as histórias me serviam e das chuvas e tempestades das monções. Tenho saudades de todos aqueles que já fui, saudades do pai e da mãe que não conheci, saudades dos irmãos e de todos os parentes anónimos que possuo e saudades da mágica lagoa do glaciar de Gomukh. Tenho saudades de esculpir o tempo, saudades da história que vou poder construir, saudades dos tranquilos finais de tarde em Varanasi, das descuidadas e ruidosas máquinas reluzentes de Allahabad. Tenho saudades dos primeiros dias em que nos encontrámos, do primeiro dia em que me sorriste. Tenho saudades do teu perfume, de quando me pintaste a marca azul que nos pertence, saudade do momento em que o Ganges se transformou e de quando eu próprio fui o grande rio. Tenho saudades de quando voei feliz pelas montanhas, saudades das dores tamanhas e dos cansaços, tenho saudade de tudo quanto é vida, pois ela é sempre.

Este é o momento de meditar.

Serei parte das palavras contidas na primeira história, parte do que ajudarei a reconstruir.

A história de que o tempo não tem fim nem tem início, tal como o rio, a água que o serve, a chuva afectuosa, as eternas brancas neves onde renasce, onde se cumpre mais uma das etapas.

A história de que a vida não tem fim nem tem início, tal como uma viagem, na galáxia que a serve, nas pedras gentis, nos eternos meteoritos gigantes que a abençoam, que a ajudam a renascer e onde se cumpre mais uma das etapas.

A história de que as histórias não têm fim nem um início, tal como as palavras, no coração das pedras onde se arquivam, em letras transparentes e frágeis, renascem pelas vozes de quem as participa fazendo assim cumprir mais uma das etapas.

A história de que o tempo, a vida e as histórias não têm fim nem um princípio. A sagrada marca azul que me ofertaste permite-me jogar com as palavras, com as histórias e com o tempo. Regresso onde já estive e ao que fui, relembro o doce e o amargo dos momentos, observo-me inocente e já senhor, voo rapaz-pássaro dando uso às minhas asas, venço os desertos, as montanhas e o equador. Atravesso oceanos sem ruído, admiro as multidões e os peregrinos. Saltito de cume em cume e neles avanço, me transformo, cresço e reflicto.

Esta é parte da primeira história que terei de transmitir.

Os jovens da montanha serão transformados e a palavra primeira difundirão. Os séculos serão minutos e os minutos séculos serão. As neblinas deixarão de tapar o cume das montanhas e os horizontes ficarão mais perto e coloridos. A aventura deste povo e destas gentes começará, se perpetuará muito para lá do interior habitado das montanhas.

Como o primeiro de todos os dicionários, assim que as palavras da primeira história forem escutadas os rostos se transformarão, as almas dos peregrinos serão iluminadas e por toda a planície se plantará a raiz deste momento.

Tenho saudades tuas meu amor. Sei onde habitas lá distante junto às longínquas primeiras luzes do universo. Sei que este ainda não é o momento para te visitar.

O meu coração é teu e os dois fazem um só. Sentem e sabem e entendem os momentos. Noutro dia, numa outra época, esta história será finalmente interpretada.

A solidão não existe, não tem princípio nem fim, tal como o tempo, a vida e as histórias. Os momentos de solidão trazem-me de volta o teu rosto e o teu sorriso.

Esta história não existe, nunca aconteceu. O poder sagrado da marca azul faz parar o tempo, girar o tempo, pode até transformar o tempo mas não consegue derrotar a solidão.

Por momentos voltei às águas do Ganges no dia em que nos conhecemos. Salvaste-me com um sorriso, uma história, uma emoção. Contaste-me parte do que tinha sido gravado na primeira de todas as histórias e apontaste na direcção do céu onde construíram a nossa casa na face iluminada da lua.


O meu amor

Menina princesa do Ganges

Revolve as galáxias

No centro da sua mão


Os séculos são minutos

Os minutos em séculos se transformarão

O tempo é esculpido

Como foi o glaciar em Gomukh

Como o Ganges

Como as palavras

Até as da primeira história


E como as histórias

Não têm fim

Nem início


No coração das pedras

Arquivadas

Guardam saudades

Momentos

Em letras transparentes e dedicadas


Regressam ao que já foram

Relembram

Constroem os avanços

As viagens

E transformam os minutos em séculos

E séculos em partículas de segundos


As palavras da primeira história foram escutadas

Iluminaram toda a planície

É uma história de amor

Construída na face iluminada da lua

Onde dormimos

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terça-feira, 21 de junho de 2011

MOMENTOS 19


21 de Junho de 2011


Com o crescimento das rochas dou conta que o meu repouso terminou. Consegui entender como crescem as montanhas mais rapidamente do que entendi o meu próprio crescimento. Nelas tenho meditado, como um pedaço de rocha serena, e arrecadei forças para avançar para terras mais longínquas. Não entendi que as histórias que ecoam por todas as paisagens da cordilheira gigante, as histórias que crescem com as rochas, são feitas de dor e sofrimento. Faltavam-me essas palavras. Aqui, no tecto do Mundo, todas essas histórias foram acrescentadas à minha. Eu fui o peregrino a quem a mãe-montanha decidiu poupar a vida para servir de mensageiro. Terei de seguir a estrada branca que veste as montanhas até que o calor volte a abraçar as planícies para onde voarei. Foram muitos os dias de inclemência e tempestade e perdi para sempre os companheiros peregrinos que a montanha derrotou. Não vejo o sal nem os doces néctares que amamentam os regatos. Este foi o ensinamento que bebi de tantas histórias arquivadas no coração das rochas. Tive de vencer os medos, as angústias e a solidão. Tive de ganhar a coragem necessária para continuar a subir até ao topo da montanha onde vim colocar a minha história e onde bebi os ensinamentos de todas as histórias escondidas. Agora estas montanhas fazem parte de mim e eu sou a montanha. Acrescentei-lhe todos os pedaços importantes da minha história enquanto os pássaros me ajudaram a acalmar.

Vieram ter comigo, vieram redescobrir o prazer de voar. Não posso resistir ao chamamento das nuvens e do azul. Descobri qual a sensação vivida por todos os peregrinos que venceram as montanhas e descobri qual a sensação vivida por todos os peregrinos que foram derrotados pelas montanhas.

Crescer!

Terei de crescer, tal como a grande montanha-mãe, através de momentos dolorosos, recordando milhares de histórias e milhares de memórias cansadas, lembranças, medos e segredos que me transformarão e enriquecerão.

Caminho como penitente para resguardar as asas. Descubro as sensações vividas por todos os peregrinos a quem a montanha-mãe venceu. Deixo que os animais me ajudem na descida. Cavalgo nas costas dos iaques por vários dias e aproximo-me cada vez mais da saída nordeste da imensa cordilheira.

Todas as palavras e momentos que carrego serão colocados em manuscritos duradouros que se perpetuarão muito para lá do fim dos tempos. Aos mais esclarecidos ensinarei os preceitos e a razão.

Nas árvores nascerão folhas que depois irão transportar capítulos importantes das histórias. Os solos onde cairão serão férteis, generosos, e as colheitas contentarão todos aqueles que delas se alimentarem trazendo-lhes prosperidade e sabedoria. No que irá ser acrescentado a esta história se fará notar essa evidência.

Nas moradas construídas próximas das montanhas, dentro dos próprios gomos das montanhas, habitam estas pessoas que desconheço mas que já vi.

Pelo sonho se agitam as montanhas que sentem como nós, como todos nós, porque são nós.

Receberam-me com surpresa, com a admiração de quem nunca vira um rapaz-pássaro. Os segredos começaram por mim a ser desvendados, são dados a conhecer às crianças pois são sempre elas que chegam primeiro aos peregrinos. Estas são as crianças que sempre moraram comigo, defronte de mim como nos meus sonhos. Acompanharam-me desde Allahabad, desde que me transformei no rio, no firmamento, desde que rejeitei essa condição.

Sou criança como as que cá moram, como as que sempre cá moraram. São elas que vencem, antes de todos, os medos e os receios. São elas as primeiras a me virem receber. Agora sou eu, somos um só neste abraço. Somos como uma nova história feita de alegria. No alto das mais altas montanhas, ao meditar, deixei por momentos de sentir, deixei de sentir este corpo azul emplumado para passar a escutar os sons melodiosos do próprio crescimento.

Quando as janelas se abrem, há felicidade sempre, pois as crianças vivem como as flores. Nesta povoação escondida, escavada nas entranhas da própria montanha, perdida nos penhascos escarpados que convergem para o sinuoso leito de um rio esquecido, o tempo parou. Só voando se alcançam estas paragens escondidas de todos, do rio, do próprio sol. Viradas para norte fogem da luz da manhã e acompanham as sombras que as protegem. Os únicos pássaros iluminados são as crianças que voaram através dos seus sorrisos para me virem conhecer.

Vou-lhes transmitir todas as histórias, todas, até parte da primeira, até as que de forma dolorosa provocam o crescimento de todas as montanhas, principalmente as que de forma dolorosa provocaram o crescimento contínuo das montanhas.

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segunda-feira, 20 de junho de 2011

MOMENTOS 18


19 de Junho de 2011


Apanhar os animais que se deslocam em bandos e em pequenas manadas, ser nómada, avançar seguro perante as intempéries. A decisão de continuar até que as cem montanhas sejam visitadas, sem caminhar, só através de voos peregrinos saltando de cume em cume. O descanso é feito durante a noite, quando as montanhas meditam. Houve quem desistisse, quem o tivesse feito antes de atingir o objectivo inicial. Trazer até estes cumes a história que teriam de ofertar.

Apanham todas as pedras, a chuva cai misturada com neve, as pedras caem, as histórias tombam, os peregrinos voltam atrás para resgatá-las, a chuva não pára de cair com a força de mil Monções, os peregrinos são derrotados pela força das águas, as baladas que se escutam tentam restabelecer o ânimo para novas tentativas. O prémio para a jornada só se obtém quando depositarem a história no topo da montanha e receberem a dádiva do dever cumprido. Descerão rejuvenescidos, serão outros pois avançarão até a base da montanha transformados e enriquecidos.

Escolhem, optam os peregrinos pela montanha que desejam alcançar. No topo da alta e majestosa senhora escondem-se milhares de histórias, tantas quantos os segredos, os medos e as lembranças de memórias cansadas que as fizeram assim crescer.

A música que se escuta é a do vento, da chuva das Monções, da intensa e forte tempestade, dos relâmpagos que acompanham as luzes que rasgam os céus como troncos iluminados. As avalanchas derrotam mais peregrinos. As rochas não lhes facultam protecção e muitas histórias ficam para sempre perdidas nestas lutas desiguais. Foi esta a recepção preparada e as vidas ceifadas aumentam, como as mágoas esquecidas, o tamanho das alvas esculturas. A água respira, transforma as encostas, faz crescer os glaciares e as escarpas escorregadias, desce com as neves eternas que cedem ao seu próprio peso e descarregam a fúria arrastando peregrinos, arrastando bandos e manadas e os nómadas.

Viajantes derrotados, partiram para uma viagem diferente da que vieram procurar. Os movimentos da mãe-montanha foram aumentados milhares de vezes pelo imenso poder das Monções, pelo trovejar dos relâmpagos e pelo destruidor avanço das avalanches.

Este é o momento de meditar.

Faltava percorrer este caminho. O caminho da derrota, da surpresa, da dor, do sofrimento. A montanha desejou apoiar estes ensinamentos cruéis. Esta é uma história de tristeza como tantas que se encontram perpetuadas no topo de todas as mães brancas.

Aqui respiro após a noite ter vencido as tempestades. As tempestades venceram os peregrinos e estes derrotaram a solidão. As histórias trágicas fazem parte da montanha e serão guardadas no coração das pedras. Atravessarão todas as montanhas, serão transportadas pelos ventos e até a lua respirará parte desse ensinamento para iluminar os picos mais distantes com as palavras que as ajudaram a crescer. Um peregrino não foi derrotado neste dia. O castigo da mãe-montanha foi ter-lhe poupado a vida para que perpetuasse esta história pelos outros peregrinos da sua província. Quando descer com a derrota transformada em palavras cumprirá com a missão que a mãe-montanha lhe conferiu nesta jornada.

- Não temas a noite, a morte e a solidão. A existência perpetua-se para lá das evidências. Os laços que te uniam aos outros peregrinos que acabaram vencidos são o que te farão ligar à vida. Como todos os peregrinos do Mundo vais aprender a escutar o teu próprio crescimento!

Acordei! Este sonho mau não é digno do pequeno rapaz-pássaro peregrino em que me transformei. Não viajo por estas montanhas para lhes acrescentar histórias cinzentas e desse modo as fazer crescer.

Medito!

Os medos, as angústias, o peso alucinante que foi acrescentado pelo passar dos anos e dos séculos não justifica as imagens de sofrimento que nesta montanha alimentam o meu sonho. Este é o momento de adormecer. Mergulhar novamente para limpar o pesadelo da destruição, mesmo que as palavras da menina princesa do Ganges tivessem tranquilizado o único vencedor do cataclismo.

Escuta! Pára antes que o efeito da luz da lua deixe de estar presente. Se a montanha-mãe assim decidiu não o fez só por capricho. O Universo existia antes e assim permanecerá para lá das mortes dos peregrinos. Não te parece absurda essa forma de escutar? Não é um pesadelo a história que te foi contada no cume desta montanha. Neste momento sentes dificuldade em falar, em pensar, porque a justiça reuniu esforços suficientes para perpetuar a história de um dos peregrinos viajantes. Regressa ao teu sonho, regressa e descansa. A história que a montanha contou foi trágica e não estavas preparado. Depois de tantos dias de viagem, tantos cumes visitados, tantas peregrinações atravessando as mais geladas e inóspitas cordilheiras do planeta, este é o momento de descansar.


Respiro

O ar que respiro é rarefeito

Os peregrinos enfrentam a Monção

Enfrentam uma intensa tempestade


São derrotados

Partiram para uma viagem diferente

Da que vieram procurar


Faltava percorrer este caminho

Esta história de tristeza

Que como tantas outras

Fizeram crescer a cordilheira


Guardada no coração das pedras

A história atravessará as montanhas

Transportada pelos ventos

Respirada pela lua

Ajudará os picos mais distantes a crescer


Não temas a noite

A morte

A solidão


A existência perpetua-se para lá destas evidências

Este é o momento de descansar.

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