quarta-feira, 1 de junho de 2011

MOMENTOS 12


31 de Maio de 2011


Se a viagem só agora teve início, os dias que estão para chegar serão surpreendentes. Todos os princípios são momentos de esperança, de renovação e alegria. Tudo é possível, tudo se pode escrever, tudo se imagina e deseja. Os músculos são jovens, a memória vazia e os sabores estão por descobrir. A luz que entra e visita fere a vista inocente que se retrai. Fecham-se a pupilas em sua defesa. Os sonhos começam agora. As histórias irão escrever-se. Todas as histórias são possíveis, todos os bailados, todas as viagens, todas as asas e todas as nuvens se perfilam expectantes e sábias. As conversas ficam guardadas para depois. Este é o tempo de escutar, de cheirar, de saborear e de sentir. Este é o momento em que as alegrias substituem tristezas desconhecidas. Este é o tempo de construir, de nos deixarmos habitar. É o tempo de transformar com o poder das histórias e das palavras.

A montanha silenciosa recebe a madrugada. O poder da escuridão gelada abraça-me, embala-me, adormece-me. Não quero crescer. Neste abrigo nocturno as pedras contam as mais encantadoras histórias. Não me apetece descer, não me apetece deixar a sua companhia. São as minhas primeiras companheiras. Deixam-me envolvê-las, deixam-me beijá-las, deixam-me segredar pequenas confissões, receios, sentimentos. Deixam-me que lhes conte a história do rapaz-pássaro que se transformou neste rio mensageiro. Escutam-me com atenção. Sábias, as pedras escutam as asas, os voos e as viagens. Todos os dias e todas as noites aqui respiro mesmo que o corpo avance, cresça um pouco na direcção de mais silêncios. Uma das pedras sentiu a minha voz de maneira diferente, chegou até mim com convicção e disse:

Nas histórias passadas muitos foram os rapazes-pássaro que fizeram este percurso. Os mesmos medos, alegrias e bailados foram por eles experimentados na nossa companhia. Até tu já aqui estiveste mas não te recordas. Nós possuímos a memória de todas as memórias, já fomos montanha, já fomos vale, já fomos fogo e seremos pó. Todas as memórias nos pertencem daí a nossa sabedoria e astúcia. Não procures descobrir o que não entendes. Tudo assim acontece porque o deus do tempo venceu a preguiça e transformou as viagens. Mas a menina princesa do Ganges deu-te um presente improvável, deu-te essa misteriosa marca azul que te pertence. Vais ter de te lembrar como dar-lhe uso, como tirar partido da poderosa recordação. Os dias e as noites e as estações serão teus aliados, como as pedras, a princesa e as montanhas. O vale chama por ti, mais cedo ou mais tarde acabarás por nos abandonar e chegarás até ele. Receber-te-á de braços abertos. Ganharás mais um amigo. As tuas asas perdidas estão lá guardadas junto às asas dos rapazes-pássaro que por aqui passaram. Também as outras asas das tuas anteriores viagens se encontram arquivadas nos ficheiros do vale. As suas memórias são as nossas memórias. Foram divididas em partículas tão minúsculas como a mais minúscula das partículas do deus do tempo. Não vives no presente nem no passado mas o futuro só pode existir porque o passado e o presente te construíram e assim te fizeram, como à montanha, como ao céu e como às pedras sagradas que se escondem em Gomukh e te vêm nascer. Não tenhas receio de descer até ao vale. Estes são os primeiros dias e a viagem só pode ser feita com perícia se não te esqueceres, se tiveres guardado em ti todos os que já foste e todos os que ajudaste a construir. Recorda! Medita, recorda e viaja! Sente o poder secreto da marca azul. Recebe a bondade e esta história que te conto embrulhada em neblina. Os dias e as horas serão o que desejares e nem o deus do tempo conseguirá alterar tudo o que inventarás.

Adormeci! Quis adormecer neste momento e guardá-lo como se fosse um sonho apenas. Voltarei atrás com o tempo através do poder contido na milagrosa marca azul. Quero escutar novamente as palavras da pedra amiga que assim me embalou.


Em Gomukh

Escuto as pedras e as rochas

Na madrugada

Da mãe montanha

Onde nasci


O vale aguarda

O ribeiro cresce

Sempre que o glaciar

Respira

E se transforma


Quero parar

Recuperar o poder das asas

Voltar aqui

Sempre que possa adormecer

Nas histórias contadas

Pelas pedras aliadas


Na madrugada

Da mãe montanha

Onde nasci


Dia 31 de Maio ( noite )


De noite respira-se melhor na companhia das sombras. Aguardo pelas novas palavras. Aguardo pelas histórias que contém séculos de sabedoria.

O poeta escritor apoia-se nas dores que alma e corpo transportam. Os viajantes peregrinos são raros por aqui e durante as madrugadas só mesmo as sombras se atrevem a pernoitar. Quantas histórias se perderam e quantas se voltaram a encontrar?

As pedras juntam-se, respiram as palavras contidas em todas as memórias e meditam também. Recordo nesta madrugada a mãe montanha onde nasci. Aqui lentamente me atrevi a juntar as primeiras gotas, as primeiras palavras das primeiras histórias e mesmo a primeira. As vozes dos oito irmãos conseguiram fazê-la aqui chegar.

No início acordaram as estrelas e o leito de quem agora sou transformou-se no firmamento. Um caminho feito de som e de palavras. As primeiras personagens acordaram como acordes de melodiosas seduções.

Receber as palavras vitoriosas, guerreiras, sobreviventes que aqui se vieram oferecer. Histórias após histórias que abatem os muros. Os oceanos e os mares são povoados como as terras, como as vastas planícies, como os desertos. Abriram as portas aventureiras para que as histórias pudessem florir dos céus, das estrelas, desde Gomukh até às planícies, até aos vales profundos, até este momento, até aqui.

Contadas pelos herdeiros como descendentes do próprio deus dos deuses, vencendo intempéries, discórdias, iras, venenos e até a fúria das monções. Os inimigos não conseguiram derrotar as protecções destes herdeiros voluntariosos. A sua arte ímpar perpetuou a todos as mensagens.

As imagens voam alvoraçadas como os ruídos, os sons e movimentos e entendem-se nelas os próprios cheiros que saltam transparentes. Formosas são libertadas para serem finalmente servidas aos primeiros homens. Soltam pedaços de viagens, de todas as viagens, soltam os gestos, as misérias, os abalos e os ventos fortes saem com a velocidade tenebrosa de milhares de ciclones. Surgem repentinos como brinquedos fabricados pelas mãos enfeitiçadas da menina princesa do Ganges que os não queria deixar seguros e desatou.

Honras imortais e nobres contidas nessas palavras que as pedras da memória seguram. Nenhuma tempestade as conseguiu vencer, destruir ou engolir. Sobreviveram inteiras como deusas. No alto da mãe montanha foram forjadas com arte e em engenho e por vontade dela desceram até Gomukh para celebrar.


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