domingo, 29 de maio de 2011

MOMENTOS 11


28 de Maio de 2011


Procuro as primeiras palavras.

Para que o nascimento da primeira história pudesse ter acontecido, nasceram na boca dos homens as primeiras palavras.

A primeira história perpetuada e transmitida, é transformada para além dos primeiros homens, por todos os outros a quem a força da mensagem conseguiu alcançar. As palavras e as mensagens cresceram como o rio sagrado.

Os irmãos aprenderam todas as histórias, foram as pontes e as estradas por onde viajaram essas aventuras. As palavras desses oito irmãos cresceram e multiplicaram-se por todos os que as escutaram essa primeira vez. Os herdeiros caminharam depois, como os irmãos mensageiros, com a mesma missão. Transmitiram o poder contido nessas primeiras palavras e todas as histórias que viram nascer. E esses mensageiros fizeram crescer as histórias, as palavras e as mensagens, até que os oito irmãos foram desaparecendo um após outro pelo implacável chamamento das estrelas. Os herdeiros tinham cumprido integralmente a sua missão e já outros herdeiros dos primeiros se encarregavam de transmitir as palavras, as histórias, todas as histórias nascidas depois da primeira assim como a primeira de todas as histórias.

Não se sabe quantas gerações de herdeiros desses herdeiros dos oito irmãos seguiram pela imensidão do grande rio sagrado ensinando o que estava contido nas palavras da primeira história. O rio encarregou-se de lhes fornecer a linguagem que se transformou com o poder do deus do tempo. As palavras evoluíram, serpentearam, mas as histórias que nasceram depois da primeira mantinham a mesma alegria, ensinavam a mesma lição. O segredo do nascimento da montanha e do tempo, da raiz do universo e do grande rio sagrado está encriptado nas palavras da primeira história.

A viagem do grande Ganges teve início num lugar longínquo onde o grande rio sagrado já tinha acontecido. Dentro dos infinitos universos que o constituem, as suas águas poderosas resolveram visitar os habitantes do pequeno planeta azul junto às montanhas onde o deus dos deuses habita, tudo vê e tudo cria. O próprio deus dos deuses defende o planeta da chegada violenta do grande rio sagrado que causaria a sua total destruição. Estas palavras juntamente com as suas filhas, netas e bisnetas, foram crescendo com a força reconciliadora e perpétua das águas milagrosas do Ganges que assim chegou.


29 de Maio de 2011


Música e flores.

Não consigo recordar as primeiras oferendas embrulhadas em canções.

Passaram as preces, as orações e meditaram os peregrinos envoltos pelas minhas águas.

Acordo.

Procuro alimento.

Nenhum outro vale recebe com tanto agrado as primeiras águas que viajam desde o alto das grandes montanhas sagradas como em Gomukh. O ar frio arrefece o início da viagem. Já passei por aqui e a altura em que o outro início aconteceu volta agora a repetir-se. Sem asas deslizo. Tudo à minha volta me pertence. A liberdade simpatizou comigo. Foi aqui criada, aqui onde os dias são iguais desde o início até ao fim das viagens.

As montanhas protegem a descida. Corro livre pelo meio dos rochedos da mãe branca que abriga o início da viagem. Deixo-me embalar pelos sons das veredas, dos nevoeiros, dos cânticos, das mensagens.

Soube hoje, mais uma vez, que tudo vai recomeçar.

Os olhos de milhões irão reflectir-se nas minhas águas. Vão recordar, vão desejar, vão festejar com as estrelas que também iluminarão o meu serpentear.

Este é um livro difícil de resumir. O tempo lhe trará poder, intensidade. Pensar esta viagem como um crescimento. Ao longo dela serei tratado e preparado, evoluirei com os cuidados dos peregrinos, com as suas histórias, as suas preces e palavras.

As minhas asas são as palavras. As histórias, como as primeiras, são o que possuo para evitar a solidão. No leito viajo como as estrelas no firmamento. Carrego o passado desconhecido que procuro novamente. As primeiras vozes deixaram no leito as mensagens dos peregrinos.

Este livro é muito mais que as palavras do passado. O doce recordar não é importante para esta história mas faz parte dela. O sol põe-se e acorda em locais diferentes de dia para dia. Viajante solitário aquece o alto da montanha sagrada fazendo-me crescer. Serpenteio aquecido pelo seu calor que me envolve e acompanha.

Hoje é quinta-feira e todos os outros dias que o deus sol decidir.

Escrevo a minha confissão.

Desejo ser novamente o rapaz-pássaro que voa em liberdade no coração das nuvens! Não aguentarei muito mais tempo esta dimensão, a minha idade não mo permite. Lá do alto consigo vislumbrar a verdadeira dimensão da insignificância. Nessa insignificância cabem metades inteiras de universos que depois mergulham em mim, que depois são transportados, purificados e que viajam em constante crescimento até à foz.

Onde fica a morada deste reino que visito? Transportaram-me até ao rio que se transformou em céu e me acolheu. Abrigou-me por mais de cem dias para lá do mais inóspito dos desertos, o mesmo céu que já foi universo e já foi o nada.

O momento é de lembrança.

Passei por aqui mais que uma vez. Por mais de uma vez aqui senti o desejo de regressar e de ser o rapaz-pássaro. Quero voar, voltar ao início, voltar ao exacto local onde a força dos peregrinos me arrastou até ao fundo do grande rio sagrado em que me transformei.

Este é o momento de lembrança. O momento em que a viagem começa transparente e iluminada. O momento em que as palavras deste livro ganham força e coragem para se afastarem das primeiras e voarem ímpares em direcção à foz.

Sou o rio e sou a carta e sou o livro, este livro em que me transformei.

Usar as palavras como as primeiras para com elas transformar os momentos e viajar.


Ser palavra

O rio

Voar sem asas

Como a primeira história


O momento em que a viaja começa

Novamente

A recordar

Momento de lembrança


As asas são as histórias

São as palavras

Aquecidas pelo deus sol

Que ilumina o seu serpentear


E se mesmo o universo

Já foi o nada

Usarei as palavras que nada foram

Para transformar os momentos

E viajar

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