terça-feira, 10 de maio de 2011

MOMENTOS 5


9 de Maio de 2011


Aprecio a luz e a erva tranquila que, observadoras, do lado de fora da janela, contemplam o conhecimento, a juventude e a inquietação. As dúvidas existem, como as rochas foram transformadas no vasto tapete que forra a imensidão do deserto. Do lado de cá, depois da viagem, admiro a distância e o horizonte ultrapassados. A cabeça lateja e os braços, asas cansadas, ainda tremem, ainda bradam aos céus a dor e a raiva e a sensação de imortalidade pelo acto consumado, por esta vitória. As linhas traçadas são apagadas, são revividas na mente, são reorganizadas, são novamente relembradas, tranquilamente interpretadas e o peso que tanto vazio causou na reconstrução de quem sou, é uma alegoria. Coloco a mão na boca, na testa já seca, nas faces queimadas, no queixo trémulo, acaricio o sobrolho e as maçãs do rosto, coloco os cabelos amarelos pintados assim pelas areias e pelo vento, por detrás das orelhas. Seguro a testa, seguro a cabeça e penso e medito e reflicto e sou. Junto as mãos para ajudar na recordação, para trazer de volta os sumos, os néctares que me deram forças ao longo da jornada. Revejo vezes e vezes sem conta a escuridão, os lagos que o deserto engoliu, que destruiu, o sol que quase causou a minha ruína mas me fortaleceu, a luz azul dos dias a nascer, das pétalas caídas, dos animais abatidos, da solidão, do mar e do Ganges eterno.

Os teus olhos viam dentro de mim como nenhuns outros. A distância era assim vencida e a miragem, a tranquila miragem da vitória, acabava sempre por se sobrepor a todas as outras imagens. Uma mão invisível ajudou este meu voo, milagrosa, pura e amiga. Derrotei todas as distâncias, todos os receios, porque sei que em mim tu habitas e me orientas e me seguras. A tua vinda repousou a minha vontade de cair, de me deixar embalar pelas dunas da escuridão naquela madrugada gelada do centésimo segundo dia. Uma corda poderosa puxou o meu corpo na direcção do bafo estéril das areias que me pintaram o cabelo e me cobriram a cara com picadas dilacerantes. Quase me arrancaram a pele, os lábios, as sobrancelhas e os olhos. Quase me fizeram desistir, abandonar a viagem e deixar-me assim vencer pelo peso deste chamamento venenoso, desta invasão. Segredei-te a minha aflição e mais poderosa do que as forças que nessa madrugada me levavam para junto das dunas e do vazio, uma poderosa força azul acordou o tempo e derrotou-o.

Imóvel como o grande elefante, como as sagradas montanhas do norte, como a primeira gota que de tudo o que era negro e seco fez luz e harmonia, a minha vontade mudou.


10 de Maio de 2011


Milhares de vozes cansadas agitam-se deste lado do oceano da areia. O desassossego é notório. Não lhes escuto as palavras por protecção de uma surdez repentina. Agitam-se como uma matilha, bradam aos céus, cerram os punhos e carregam nos rostos temperamentos sombrios, desesperados. As areias do deserto movem-se por debaixo da multidão. Cedem passagem às finas partículas de deixaram de estar unidas e ameaçam engolir os muitos milhares que ali se encontram. O grande deserto tem fome, tem sede e demonstra uma vontade mórbida e cruel. Em menos de uma metade de minuto os manifestantes desapareceram para sempre engolidos por um mar laranja e seco que os sepultou. Com as mãos e os braços procuraram por auxílio. Agarravam-se uns aos outros desesperados. Abraçaram-se e puxaram-se e faziam de todas as fraquezas forças. Apenas os braços e as mãos como pequenas flores de carne e osso se agitavam por cima das areias quentes, das areias cruéis que resolveram engolir a multidão inteira de um só trago numa demonstração implacável do poder do deus dos desertos.

Na tua mente sinto ímpar essa força que te trouxe até aqui. Com as tuas asas conseguiste encontrar uma resposta. Dominaste o poder das garças, das águias, dos falcões. Atravessaste o imenso deserto agarrado ao sonho que te guia. Na tua mente sinto e vejo e escuto a imensidão gelada do mar que te circunda. És uma ilha meu rapaz, uma ilha semi-perdida, meia por descobrir. És um ensaio a quem os deuses se esqueceram de acender as vontades. És um pássaro perdido, afastado dos bandos, afastado pelos outros pássaros dos bandos que povoam os céus, as estrelas e as galáxias. Na tua mente sinto e vejo e escuto os medos, as marés que receias, as doenças que temes, os adversários poderosos que possuem o poder para te destroçar. Na tua ilha a solidão habita, os sonhos morrem salgados, a esperança não sobrevive mais que breves instantes. E contudo, apesar do que vejo, sinto e escuto, apesar destes negros e destes ácidos e destas feridas, a direcção e o rumo que escolheste foi este! Coragem não te falta ou serás movido pelo desespero e pela insatisfação? Vejo e sinto e escuto um sinal em ti, uma luz, uma gota onde parece estar contida a imensidão inexplorada de toda uma galáxia.

Os pássaros voltam a povoar as nuvens, bailam em meu redor, bailam à minha espera. Desenham símbolos vermelhos e símbolos negros que me são cuspidos com o propósito de me roubarem a sagrada marca azul que a menina princesa do Ganges me concedeu. Fujo. Levanto-me novamente para escapar a este súbito ataque destes sinais venenosos. Serpenteiam à minha volta não falhando nas suas intenções. A marca azul está tatuada no braço e só se me arrancarem a pele, só se a testa e os músculos me forem roubados, só se me cegarem, só se me enganarem, só se demonstrarem maior inteligência e vontade na sua missão é que conseguirão atingir o seu propósito. Salto primeiro por cima dos símbolos velozes antes de partir rumo ao nordeste. Levanto as mãos e as imagens do Ganges iluminado surgiram como uma pintura nos céus que vestem a paisagem deste lado de cá do grande deserto. Bato os braços, ergo as asas imensas que me cobrem todo o corpo até ao chão. Cansado mas lutador, levanto a cabeça, corro veloz para promover a velocidade necessária que me fará subir aos céus.

Os negros e os vermelhos apertaram-me os tornozelos antes que o conseguisse fazer. Voltei ao tapete quente cinco curtos segundos depois de ter voado. Pontapeei os sinais, voltei a chutá-los violentamente mas eram poderosos e nada sentiam. Duas mãos negras nasceram das areias e agarram os dois símbolos sem que estes conseguissem resistir, apesar das tentativas feitas para se libertarem destas garras salvadoras, não conseguiram fazê-lo e acabaram arrastados para o coração das areias, para o mesmo lugar onde habitam os seres a quem o deus dos desertos deu ordem para engolir. Não entendi o que se passou. Sou muito novo para perceber os jogos dos poderosos, os jogos dos que arquitectam assim as vontades sagradas. O meu rumo é levantar voo daqui para fora em direcção a nordeste, em direcção ao céu pintado com as cores do grande Ganges. Procurarei pelas respostas noutro lugar. Aqui só encontrei mais medo, mais solidão e misteriosas formas de vida. Este deus dos desertos parece desumano, cruel e feroz. Se me quisesse fazer desaparecer tê-lo-ia feito como praticou com a multidão suplicante. Bastar-lhe-ia ter-me empurrado, fazer com que o meu corpo franzino e cansado se colasse aos que engoliu. Aqui não existem locais secretos, nem flores, nem doces sumos, nem alimento. Aqui a etapa transportar-me-á numa direcção diferente.

Se voei pela imensidão do deserto rumando sempre a favor do oriente, agora escolho subir, escolho virar o rumo para mais a norte onde procurarei ajuda porque assim me segredam as vozes, porque assim mo recomendou a menina princesa do Ganges com o seu sorriso. Enviou-me a sua amiga lua que me acompanha e ensina e aquece.


Força

Sobe agora rumo ao Ganges

Pintaram-lhe as cores e a luz nos céus

Sabedoria


Antes que seja tarde

Antes que te roubem a marca sagrada

Essa fortaleza poderosa

Muralha intransponível

Vertical

Te dará protecção e segurança


Recorda agora a viagem

Os medos

O cansaço

A dor e a doença que te ameaça

Em forma de negro

Em forma de vermelho

Como um sinal

Uma marca

Um sufoco


Força

Sobe agora rumo ao Ganges

Vai fazer parte das suas cores

Vai ser no coração dos pássaros

A sua luz

Sabedoria

Antes que seja tarde


Fica atento

Ao que está debaixo

A tudo o que se esconde

Como víbora

Como uma imensidão desértica

Que te deseja engolir

Num só momento


Fecho os olhos. Escuto o silêncio que toma conta da viagem. Mais quantos dias, mais quantas noites serão necessárias até chegar a novo destino? O Ganges sagrado tomou conta do céu que agora segue viagem neste leito invertido que me serve de estrada. As asas e os músculos ardem de quando em vez, fazem-se escutar e participam nas memórias que acompanham a viagem com esperança. Navego ao sabor das águas delicadas do rio que me dá alento e segurança. Deixo-me arrastar pela corrente viva que tomou conta de mim. Estou estafado. São meses consecutivos a voar, meses de uma viagem que só agora começou. Os ventos olham para mim com vontade de me congelar. A menina princesa do Ganges dirigiu-se a eles, colocou-os na palma da sua mão esquerda e com o indicador agitou-os até que se transformaram em gigantescos tornados enfurecidos. Riu-se daquelas terríveis tempestades a rodopiarem na sua mão. Como se fosse um plano, aproximou da minha cara as pequenas estátuas ciclónicas controladas por si. Reconstruiu as tempestades com forças ainda mais poderosas, agitando velozmente o dedo por cima delas.

Já não consigo acompanhar os desenhos que vai promovendo no espaço que nos separa. Parei de voar. Repouso por uns instantes, repouso para que as tempestades possam ser trabalhadas pelas artes supremas da menina princesa do Ganges.

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