sexta-feira, 13 de maio de 2011

MOMENTOS 6


11 de Maio de 2011


Experimentei correr até aqui e apreciar as rochas levantadas pela tempestade. Experimentei largar as asas, perdê-las, entregar esse poder ao cuidado da menina princesa do Ganges. A velocidade dos ventos e da chuva levante os animais, arranca as árvores pela raiz, as construções e todos os diferentes elementos são subtraídos aos seus anteriores locais. Os peregrinos que avançavam pelas margens do Ganges desapareceram. Os caminhos foram destruídos e os desenhos das paisagens foram apagados com o poder de mil monções. A correnteza com que o rio se abriu à tempestade deu-lhe dimensões nunca antes alcançadas.

O tempo é um exercício, uma constante, uma inovação nesta viagem. O segredo da aventura é não desejar voltar atrás, não desejar retocar as margens do rio, mudar as cores das nuvens ou as curvas na estrada. O furacão destrói e constrói, reconstrói as histórias e alimenta os pesadelos neste vendaval rodopiante. Os mantimentos na viagem escasseiam. A vantagem perdeu-se na tempestade e nem as águas do Ganges a conseguem resgatar.

Corre a menina princesa do rio sagrado com a tempestade na palma da sua mão. Continua a girar o dedo por cima dos ventos com alegria juvenil. Ri e salta como uma criança que parte à descoberta das incertezas. Aparece uma última vez no centro desta lembrança. Sorrindo e cantando desaparece bailando no coração das nuvens onde habita, beijando a tempestade, fazendo-a depois adormecer. Disse-me adeus com a mão com que se entreteve a agitar os ciclones. Disse-me adeus despedindo-se com o sorriso do início e não se esquecendo de apontar a direcção luminosa da lua amiga.

A madrugada serenou. O rio invertido desenhado nos céus está agora tranquilo. Os arcos, as nuvens, as pétalas e as flores dos peregrinos, as flores que carregam as preces e orações de todos os que ficaram retidos pelo furacão destruidor, continuam coladas às suas silhuetas iluminadas.

O sol vai delicadamente descendo até se encontrar com o horizonte amigo. Resolveu calar as vozes que, teimosamente, ainda se faziam escutar do outro lado do deserto. A viagem vai finalmente começar!



13 de Maio de 2011


Tive muitas saudades tuas. Não esperava ver-te por aqui. Vais ter muito trabalho. Vais passar as madrugadas acordado, vais dormir pouco. Vais sentir fome e dores e através de sinais inatos em ti, comunicarás todas as necessidades. Vais sentir-te abandonado, só, traído, embrulhado numa total sensação de insegurança. Vais ser um passageiro estranho no meio de seres ainda mais estranhos que não te conhecem. De surpresa em surpresa vão abrir-se portas, vai fazer-se luz e vais começar lentamente a recordar. O chão passará a ser o teu aliado, aquecer-te-á e indicar-te-á a direcção da lua, do sol e das estrelas. Os livros virão depois ter contigo um a um para te abraçar. As palavras vão preencher-te, dar-te alimento e aconchego. Passarão a ser as tuas maiores amigas. Os animais virão procurar-te, as areias dos desertos salgados procurarão aprender contigo para depois ensinarem com alegria as tuas mensagens. Os pássaros irão transportar até às nuvens a tua voz e todas as verdades serão reescritas e corrigidas. Será através do teu sábio contributo que serão finalmente interpretadas com clareza e objectividade. Não terás receios, nem medos nem te assustarás com as voltas sombrias da viagem.

O cansaço deixará de existir, os azuis serão suporte e alicerce, os laranjas vitória e sensatez, os verdes esperança e ousadia, os vermelhos força e criatividade, os amarelos luz, bondade e energia, os castanhos serão o sumo, o alimento, a garra e protecção, os cinzentos serão a alma, a raiva, velocidade e recordação, os negros serão coragem, sonho, utopia e compaixão, os roxos serão feiticeiros, os brancos sabedoria e diferença, os dourados pintarão a realidade com o inevitável nome da compaixão e a menina princesa do Ganges reinará nos primeiros séculos da tua viagem. O seu propósito será o de te auxiliar nessa busca solitária.

Existes, não o sabes. Já és tão único, tão especial como a gota mais pura e cristalina da nascente do grande rio sagrado. Não o sabes mas tudo continuará como já era, só que com a luz da tua presença. Não o sabes mas todas as tuas acções produzirão as alterações necessárias para que o Ganges se sinta tranquilo, seguro, divino. Não o sabes mas também tu um dia serás parte dele, serás outro dos que nele habita, dos que nele se banhou, se transformou, se renasceu, se modificou, se encontrou. Não o sabes mas todos os que te acompanham sorriem de maneira diferente porque te conheceram. Não o sabes mas tudo o que realizaste mudou para sempre todos os acontecimentos passados, presentes e futuros. Não o sabes mas habitas em todos os sonhos, em todas as histórias e em todas as viagens. Não o sabes mas quando o descobrires será tarde demais pois todas as tuas recordações te serão delicadamente retiradas para que exista continuidade na viagem, para que nunca exista um fim nem um início mas só momentos. Não o sabes mas os momentos são as únicas verdades, os únicos significados a procurar, as únicas lágrimas e os únicos actos a perpetuar.

Os momentos são os fios dourados com que se tecem e bordam as margens e o leito do grande rio sagrado, hoje como ontem como amanhã.

A boca do grande animal sagrado se abrirá em todo o seu esplendor. Procurará engolir toda a tua sabedoria para que lhe passes a pertencer. Esse será o seu desejo. Essa será a sua intenção principal. Viajarás em direcção ao teu novo destino, esse lugar que, sabes agora, tentarás encontrar mais a norte. Não te detenhas por lá muito tempo! Não te deixes arrefecer pelas palavras dos que habitam essas paragens. Lembra-te do teu verdadeiro desígnio. Procura recordar e medita! Ao atingires esse caminho que procuras, seja a voar seja a caminhar até que gastes os pés, as pernas e os joelhos te sangrem, medita! Recorda quem foste, quem és e quem serás. Só assim a missão da menina princesa do Ganges será possível, só assim haverá esperança para que possas vir a recordar mais um momento.


Recorda

O momento que dói

O que já foi


Recorda quem fugiu para sempre

Quem nos abandonou


Recorda que alguém te abraçou

Te entendeu

Outro momento


E promete

Medita

Recorda quem foste

Para que a esperança nunca morra

E te coloque na memória

Esses momentos

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