sexta-feira, 20 de maio de 2011

MOMENTOS 9



20 de Maio de 2011


A noite chegou tranquila. As árvores não mexem, as folhagens não bailam tal a força da brisa. O Ganges é um espelho, reflecte a terra lá em baixo por onde navegam as oferendas estreladas dos peregrinos, dos penitentes, dos viajantes. Repousa o rio e medita. Escuta o silêncio dos peixes. Avista os vultos imponentes das grandes montanhas do Norte que o vêem nascer. Como disse a menina princesa do Ganges, a amiga lua acompanha os silenciosos passos do rio.

Os barqueiros vivem do rio, no rio e são o rio. Sabem os seus caprichos e respeitam-no, veneram-no e entendem as suas palavras como ninguém. Encontraram aqui o seu lugar como o mais antigo de seus antepassados. O rio sagrado pertence-lhes e eles são o rio, como os pais, os avós e todos os outros pais antes destes últimos até ao primeiro. Acreditam na protecção da lua pois o rio é seu aliado. Em noites tranquilas como esta a aliança entre o rio, a lua, os barqueiros e o firmamento estrelado que vai reflectindo os sonhos dos peregrinos, é mais visível. O sol tem vergonha de acordar quando a lua e o grande rio sagrado dão assim as mãos nestes momentos. A maior de todas as noites acontece então, sem o estorvo do calor e da intensa luminosidade do sol impiedoso.

Adormecer como as calmas águas do Ganges é a verdadeira bênção. O momento em que este tempo é parado, a emoção de mais um Verão com saudade que beija o leito sagrado e as margens e o espelho de água que parece adormecido. As barcaças, como música, vão obedecendo ao som do esquecimento. Carregam os bisnetos dos que já as fizeram avançar silenciosas e fazem parte física do grande rio sagrado. Preferem manter estes segredos perpetuados nas memórias, aquelas que tantas repetidas vezes o poder das monções veio ameaçar. A água faz acontecer, vem à terra do céu para onde voou depois de nascer, de derreter, de se fundir para viajar. Rumo ao desconhecido avança, cresce, transforma, diverte-se, destrói, cria energia, é subjugada, reinventa-se, perpetua a eterna viagem sem se incomodar com o deus tempo, o deus dos desertos, o deus sol, porque faz parte do grande rio sagrado.

Visitar este momento na viagem que agora começou. Os olhos curiosos ganham coragem para finalmente olhar. Os olhos curiosos ganham coragem e o rio começa verdadeiramente a sentir. O corpo flutua como as barcaças dos donos do rio. Viro-me de lado e recordo o peso das asas que me levaram até às montanhas onde nasci. Recordo o maravilhoso som que faziam e os desenhos que marcavam o coração das nuvens.

As crianças aproveitam a noite para se banharem neste tranquilo espelho em que me transformei. Com a ajuda da lua conseguem ver como se fosse dia e os saltos que fazem transformam-nas em rapazes-pássaro. Acabam a mergulhar felizes no rio que as abençoa, refresca e eterniza. Elas são os verdadeiros rapazes-pássaro. A maior de todas as liberdades é sentida durante esse momento. Os braços deixam-se seduzir pelo peso do corpo a caminho do rio sagrado que as irá cobrir, erguer, dar-lhes asas para novo salto rumo ao vazio e às estrelas. Os seus corpos são bailarinos, são ave, são peixe, são um abraço terno que me oferecem. A noite ganha novos sons que vencem o silêncio que outrora reinava.

Vejo o céu e as estrelas, os bailados dos rapazes-pássaro de Varanasi, as encostas longínquas das montanhas-mãe. Vejo os descendentes dos primeiros donos do grande Ganges, vejo a lua amiga que me foi indicada pela menina princesa do Ganges, vejo o silêncio e o sol impiedoso que deseja nascer transformado em Verão. Vejo as orações e as oferendas, vejo as gotas ainda frescas que no início da viagem me fazem crescer, vejo as margens, os peixes e a noite abençoada. Vejo a noite tranquila, as árvores que não mexem e vejo a terra reflectida nos olhos e vejo como cresceu a vontade de dominar o poder misterioso do deus tempo e fazer dele aliado.


Ainda só cresceu um breve instante

Onde nascem todos os rapazes-pássaro

Sem asas

Com braços de gigante

E mal sentem o chamamento do Ganges

Saltam

Querem-no seu


Mergulham como o tempo

Querem ser o tempo

O rio

A eternidade

O próprio céu


Encontram um amigo

Encontram-se na tempestade gelada

No sonho

No abrigo


Recordam o tempo dos barqueiros

Os que plantaram as primeiras espumas

Desciam o rio

Eram o rio

Naquele momento


E os seus corpos bailarinos

Ofereceram-me esta dança

Gravaram-me a lembrança

E adormeci

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