terça-feira, 3 de maio de 2011

MOMENTOS 3


2 de Maio de 2011


Cai a noite. Veste-se de escuro o céu cansado. Imaginar um outro dia depois de estar, depois de ser. O poeta, perdido nas suas delicadas palavras, sofre na dúvida com o roubo causado pelo invejoso ladrão da inspiração. Os braços que elevaram o rapaz-pássaro, que o protegeram, que o transportaram em segurança até ao rio sagrado e amigo, continuam a embalar o Ganges, continuam a agradecer aos céus a renovação e a alegria, o rejuvenescimento e a luz que vieram procurar. Ninguém pensa para lá destes momentos. O infinito é aqui e agora, nunca amanhã. A estrutura deste jogo volta a embrulhar os participantes num manto morno, vermelho, tranquilo e protector. Cura a alma das maleitas, das dúvidas, das muitas enfermidades. As flores fornecem a ajuda necessária para que as oferendas luminosas descansem nas águas do rio sagrado. Aos milhares são transportadas no seu leito como galáxias, descendo, avançando delicadas na corrente que as recebeu.

Nas noites escuras consegue-se perceber a tranquilidade com que as vontades de mudança nascem umas atrás de outras, como as novas luzes transformam o Ganges num espelho do firmamento. Todos esperaram por estes dias durante semanas, meses e anos, leram as histórias de suas vidas até à exaustão, até que se cansaram de esperar e até que a segurança destes dias de festa e renovação acabou de vez com todos os lamentos. Aqui o sopro e o fluxo renascerão de mãos dadas com a esperança e farão parte do deslumbramento destas galáxias de luz.

Esta noite maravilhosa traz recordações ao rapaz-pássaro e pinta de alegria o olhar invisível da menina princesa do Ganges. Voando, mais uma vez, muito baixo, atravessa o rio por mais de dez vezes. Aprecia aquele calor que lhe aconchega o peito, o abdómen e as coxas. O rosto ainda não conseguiu libertar um sorriso. As feridas não sararam totalmente, a vontade de se esconder permanece quente no seu coração. Não tem mãe, não tem pai nem família, só mesmo as garças. São elas a sua nova família e não consegue imaginar a vida sem a sua presença. A maior das ilhas existe no coração de cada um de nós. Perpetuar esse isolamento é evitar perguntas incómodas sobre o passado, sobre o presente, sobre todos os registos que foram sendo censurados por vontade própria. As memórias são salgadas, são pesadas e amargas, construídas com o desespero das desfeitas, do abandono, da miséria mais inacreditável, dos massacres, da violência, da fome, da sede, das dores esquecidas, as que mais saltam na escuridão desta ilha que nos salva e afunda. Mas esta noite é daquelas em que o milagre azul pode ser utilizado. Dar-lhe uso para permanecer aquecido junto ao coração, ao cruzar sereno em voos levemente picados as cores de todas aquelas aquáticas galáxias luminosas.

A invisibilidade da menina princesa do Ganges não perturba o voo feliz do rapaz-pássaro. Alegra-se com o seu bailado por sobre o Ganges, por todos aqueles segredos luminosos carregados de dor e solidão. Retém a frequência com que desliza, com que flutua no ar como um herói bailarino a quem foi negada a arte milenar desta dança voadora.

Inspirado pela descoberta das estrelas aquáticas o rapaz-pássaro reconheceu todas as formas de voar, todos os truques necessários para dar pleno uso à difícil tarefa que agora domina como nenhum outro ser. Intuitivo. Um intervalo nas sombras escondidas que nas margens do grande Ganges promovem fantasmas desaparecidos, fantasmas outrora peregrinos que, em pleno dia, fizeram fervilhar de vida. Milhões de peregrinos a renascer nestas margens devastadoras e maltratadas do rio sagrado.


De madrugada

No doce abrigo da escuridão perpétua

Voa deslizante

Navegador solitário

Recebe este momento


Respira no aconchego perdido

Na tua ilha delicada e triste

Faz e transporta e transforma

Em asas bailarinas

A tua forma

A tua vontade


E por cima das luzes brilhantes das galáxias

Por sobre as sombras de milhões de peregrinos

Fantasmas desaparecidos

Renasce inspirado

Renovado na forma e na verdade

.


Sem comentários:

Enviar um comentário