terça-feira, 24 de maio de 2011

MOMENTOS 10



14 de Maio de 2011


Ainda aqui estou. Levanto a mão para escrever, para verificar se as histórias continuam a fluir na cor branca da folha. Nesta permanente procura elas acabam por acontecer. Ganham vida e uma identidade absolutamente independente.

Caminho com os momentos. Pertencem-me mas ao deixar que se tenham aventurado pelas margens destes lagos brancos que as recebem, os dias passaram a ser diferentes. Ainda aqui estou mas já sou outro. Os que conheci neste crescimento faziam parte de quem sou. As suas palavras e os seus sorrisos, as transformações, as viagens, as dores, as alegrias e as memórias, as paixões, loucuras, premonições, medos e vitórias passaram a enriquecer-me pois eram parte de mim. Os dias e os anos cresceram, as viagens aconteceram, os misteriosos desígnios escondidos nas entrelinhas das histórias foram sendo desembrulhados, alinhavados e a luz acabou por iluminar a página em branco. Esta manhã aconteceu assim e neste momento é das histórias passadas que me recordo, essas que ao nascerem não definham nem murcham nem me deixam entristecido ou isolado. As areias dos tórridos desertos escondem milhares de outras histórias, como as galáxias perdidas contidas no nosso pequeno universo inexplorado.

Viro a folha, nasce nova página, um outro caminho, outro momento.

Queria voltar a voar! O rio que agora sou ainda não me devolveu as asas que despi junto aos planaltos gelados das grandes montanhas do Norte. Este percurso é feito com outras asas, com outros sentidos, numa dimensão tão gigantesca que o peso da nova missão acaba por impressionar. Alimento-me dos peixes, das preces dos peregrinos, dos silêncios, do reflexo da lua e dos raios invisíveis do deus sol.

Cresci com as gotas que me pertencem, com as histórias que me contam, com as histórias que nele resolvi escrever. Os abismos são ultrapassados e as chuvas fortes da mãe monção enriquecem-me o corpo. Ajudam-me a alimentar quem de mim tudo retira. Os ventos e ciclones que nasceram como brinquedos nas mãos da menina princesa do Ganges fazem parte desta história. Surgiram com a mãe monção neste bailado que me faz crescer em tamanho aumentando-me o caudal e a distância entre margens. Os avós dedicam-se aos netos e os netos veneram os avós. A sabedoria perpetua-se ao longo das minhas margens desde que o primeiro dos homens aqui se fixou. Estes são os seus herdeiros, os que ainda falam as estranhas linguagens das primeiras tribos e que, mais para Sul, ainda se cantam, se ensinam e se perpetuam. São como o fogo sagrado que as viu nascer. Os palácios eram construídos com as palavras. As histórias forravam o chão, as paredes, os pilares e todas as coberturas eram primorosamente trabalhadas com as mais delicadas e ritmadas prosas que esses primeiros habitantes se encarregavam de proteger.

O grande Ganges sente esse segredo escondido e antigo quando passa em Varanasi. Aqui as palavras antigas ainda são lidas, contadas, ensinadas e assim perpetuadas até hoje, tal como outrora.

Neste momento eu sou o Ganges. Agora, neste momento, a música delicada que essas palavras vão tecendo passam do ar para o corpo húmido do rio. As histórias vêm do longínquo passado e mergulham nas águas do grande rio sagrado. Daqui seguirão, como sempre, até ao que falta percorrer. Algumas das histórias subirão aos céus antes de outras. Algumas irão descer pelos cumes gelados das montanhas do Norte, ficarão nelas eternizadas por milénios, pintando de branco o coração das cordilheiras. Outras, transformadas em cristais de luz, derreterão.

Descem as encostas até se voltarem a fundir, até voltarem a ser riacho, ribeiro, lagoa, até voltarem a encontrar as companheiras perdidas que se vão encaminhando, uma a uma, até a nascente do Ganges e daí até aos planaltos mais tranquilos e daí até aos campos férteis e daí até ao serpentear luminoso que abraça a paisagem e se funde com o povo que nele se banha e daí até Varanasi para que as palavras das primeiras histórias voltem ao lugar que as viu nascer, e aqui eu também sou.

As histórias, todas as histórias, já são diferentes.

As palavras tal como os sons continuam iguais.

As viagens tal como o tempo, encarregam-se de as enobrecer. Todas as histórias e palavras ficaram mais ricas com o passar dos dias, dos anos, dos séculos e dos milénios. Muitas foram as viagens que fizeram desde a primeira vez, desde que foram ensinadas, e logo aí começaram a crescer.

As histórias são os momentos. Os momentos são perpetuados através das histórias. As gotas continuam a descer dos céus revoltados. A monção é forte e nos últimos dois meses não pára de chover seja noite ou seja dia.

Cresço.

Sinto-me forte e poderoso. As palavras misturadas com as águas das chuvas, com o gelo das montanhas, com as preces dos peregrinos, com as histórias que quero acrescentar, produzem esse efeito no meu corpo. As asas que me fazem voar não são feitas de penas. As asas que me fazem voar são as histórias, são as palavras do povo, dos peixes, das gotas e dos momentos. O rio sou eu!

Deixei para trás as margens, os desertos, as aldeias perdidas e a galáxia onde me fazia transportar. Deixei para trás as asas brancas e a sagrada marca azul. Deixei para trás a nascente do grande rio sagrado e mergulhei. Esse foi o momento em que decidi contar mais esta história. A história do rapaz-pássaro que se transformou no próprio rio sagrado que o viu nascer.



O rio feito momento

As palavras enganadas

Que o tempo transformou

Desde o início das histórias


Este rio de vida

Bebe cada letra

Cada palavra voadora

E renasce

Serpenteando como a neblina

Aprende

Semeia

Recebe as palavras antigas

Cresce


Do sul chegaram as palavras

Em Varanasi se perpetuam

Reconstrói a vida

Ontem como hoje

Neste momento


Transformadas em rio

Em espuma

Em nuvem voadora

Atingem a montanha

Mãe sagrada


Lágrimas brancas

Gotas renovadas

Geladas

Acordam riachos

Galgam as primeiras veredas

Cascatas


Descem até ao princípio

Junto à nascente

Onde mergulhei

E me transformei

No sagrado rio sem asas


Daqui consigo escutar melhor a solidão dos pássaros. Os que voam sentem-se perdidos. Aquele imenso vazio que os separa, atordoa. Quando segui solitário nos dias e nas noites do deus dos desertos as palavras atingiram-me como flechas envenenadas. A morte surgiu como companheira, a escuridão era quente e aconchegava. O silêncio a perpetuar a dor e ilusão de ser herói como as garças e os falcões. As asas cansadas trabalharam como nunca. Perdi plumas e a fadiga já nem tinha nome. Nesses negros caminhos descobri qual o sabor da solidão dos pássaros.

Cheguei, alcancei, ultrapassei distâncias. É a vitória que aquece os membros derrotados e nos faz continuar. Do outro lado esconde-se a vitória. Do outro lado vencemos a solidão e apresentam-se novos rumos. Sem pressas os caminhos devem ser percorridos. Os silêncios serão substituídos pelo vento das falésias, pelo adocicado perfume das florestas, pelos regatos que procuram a nascente do grande rio sagrado. Eu sou o rio, a solidão e as histórias feitas com as palavras antigas que Varanasi perpetua.

Perdi as asas mas sou gigante do início até ao fim. São tantas as partes de mim que só quero voltar a ser aquele pequeno rapaz-pássaro que mergulhou nas águas puras da nascente do grande Ganges.

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