quarta-feira, 8 de junho de 2011

MOMENTOS 13


6 de Junho de 2011


Tenho inveja de quem comanda o destino. Não é sentimento bonito a inveja mas todo aquele que viaja com sabedoria merece o meu respeito. Coragem para conseguir escolher, saber o que escolher quando e onde e sem limitações. Comandante da nau e da viagem com a mestria própria do predestinado. O grão de inveja sem paralelo cresce em mim assim como um imenso respeito por todos os que assim vivem, livres como as garças e os falcões. Os desertos vencem muitos destes predestinados. Como os irmãos que até aqui fizeram chegar as primeiras histórias e a primeira também, acrescentam capítulos extraordinários a todas as outras que se encontram por contar.

Porque me transformei neste rio? Acabei aqui, neste início, sem ter noção de como cá cheguei. Vejo, observo e medito. Compreendo as sombras. A claridade e frescura das jovens gotas que me pertencem não me fornecem a visão necessária para escolher com mestria. Aqui cheguei e aqui me encontro.

Desejo ser o rapaz-pássaro, desejo a liberdade de não avançar perpétuo da nascente até à foz, de não ser este rio de vida que recebe as orações, as preces, as renovações, as peregrinações e que assim cresce e se transforma.

Quero ser a pequena gota e não o rio. Quero ser a pedra sábia e a memória e não o rio. Quero ser a chuva cristalina e a nuvem gelada que beija o alto da montanha mãe, e não o rio. Quero ser o poder invisível e sagrado da marca azul antes de existir e de dominar o tempo, e não o rio em que me transformei. Quero ser a garça e o falcão e a liberdade em forma de razão, e não o rio. Quero ser a lágrima salgada do choro de quem fui quando resisti à morte no meio do Ganges que me engoliu, e não o rio em que me transformei. Quero ser o sumo, a voz da cigarra, o néctar que a abelha transforma na sua morada doce e geométrica, e não o rio. Quero ser a seiva que fica depois da morte de mais um dia, depois de todas as histórias e capítulos que lhes foram acrescentados e não o rio em que me transformei. Quero ser o mar, quero sentir o seu abraço quando aí chegar e quero sentir o seu poder imenso, quiçá nele me transformar, mas não quero ser o rio. Quero ver para além do mais longínquo passado, entender o que se estendia para lá do primeiro instante, para lá do tempo antes da sua existência, mas não quero ser o rio. Quero ver o futuro, semear as luas e as estrelas em todas as galáxias que estão por construir, quero reabilitar os intervalos que as separam e com eles construir novas histórias, usar esse vazio como se fosse o cimento e a cola da gigantesca construção que assim nascerá, mas não quero ser o rio. Quero observar o meu rosto quando nasci, olhar o meu rosto quando cresci e ver o meu rosto quando morri invocando esta misteriosa marca azul que me foi oferecida pela menina princesa do Ganges, mas não quero ser um rio quando o fizer.

Quero ser quem sou, rapaz-pássaro, navegador solitário em busca de razões e de histórias, da solidão amarga torná-la doce e delicada como a poesia, como a verdade. Quero olhar para todas as coisas sem mentira e sem maldade mas não quero ser o rio em que me transformei. Quero ser livre, quero ser esperança, quero ser amigo, quero ser eu. Quero que a solidão me aqueça, me transforme em vapor de água, me levante com a maior das neblinas que em Gomukh aconteceu. Quero que este rio desapareça e se transforme num outro que não eu. Quero as minhas asas escondidas no vale, quero resgatá-las, quero voar de Gomukh em forma de nuvem, de névoa gelada, de monção, de rapaz-pássaro, de justiceiro invencível, de garça ou de falcão, mas não quero ser o rio em que me transformei. Quero rir e chorar, quero de volta as memórias mais perdidas, quero encontrar a outra alma que já me pertenceu, quero ir, quero voar daqui para fora sem descer até ao vale, até ao planalto, sem passar por Varanasi, sem passar como rio de vida onde agora habito. Não quero mais ser este rio de vida em que me transformei. Quero contar as histórias, roubar as histórias guardadas em todas as pedras que aqui perpetuam as memórias do tempo, quero-as só para mim para com elas aprender a ser novamente quem já fui e quem eu sou. Quero de volta a coragem para forçar de vez a minha despedida de Gomukh sem descer como rio que já não sou.

Sou de novo o pássaro sem asas, o pássaro ferido, o pássaro jovem e desinibido. Vou descer ao planalto, ao vale onde todas as asas estão guardadas, até as minhas. Vou a correr com os joelhos e as pernas cansadas. Esta vontade é forte e a escuridão da noite esconde olhares que desencorajariam o mais bravo dos guerreiros e levariam à loucura o mais astuto dos generais. Quero lá saber o que pensam e vociferam. Quero de volta as minhas asas, quero voltar a sentir essa liberdade infinita, esse poder de voar como e por onde desejar sem contratempos ou constrangimentos ou inibições. Quero fazê-lo sem ser este rio de vida em que me transformei.

A mãe montanha pretende a minha morte. Sinto e respeito a sua dor e sei que resistiu com dificuldade à tenção quente. Desrespeitei-a. Não cumpri com o propósito primeiro que aqui me fez chegar. Não quero mais ser este rio organizado, meticulosamente purificado, sagrado, do qual tudo faz parte e que recebe, desde o princípio dos tempos, a história mãe de todas as histórias. Quero apenas voar. Quero ver o mundo do alto das neblinas e dos rochedos perdidos. Quero ser estrela, oceano, ilha, mar ou apenas som, mas não quero mais imaginar-me este rio sagrado em que o meu corpo se transformou.


Dia 7 de Junho de 2011


Já não sou o rio.

A mãe de todas as montanhas deixou-me partir.

As pedras despediram-se e as suas memórias, todas as memórias, fazem parte de mim.

Os silêncios e as sombras e as histórias que viviam em Gomukh são as minhas aliadas. A sagrada marca azul da princesa do Ganges ajudou-me a escapar enquanto a neblina providenciou o abrigo necessário à transformação. Eis que sou pássaro novamente, um pássaro despido a quem faltam asas para voar. Terei de deslocar-me até ao vale, descer pelas colinas, pelas veredas geladas que me ferem os pés, os joelhos e me queimam os dedos e a pele ferida e negra.

Desapareceu a dor ao desligar o tempo.

No firmamento escondido, permaneço como uma pequena estrela perdida que dele desabrochou.

Arrasto-me, medito e sonho e acredito que todas as dores são merecidas, que todas as privações são conselheiras se no final da caminhada voltar a possuir as asas que me foram retiradas enquanto fui o rio.

As pedras escutam a história que escrevo e guardam as memórias do viajante e destes passos agora desenhados.

Olho para os pés e para as pernas e não as conheço. Reparo nos braços magros, nos dedos finos, nas mãos gretadas, sujas e baças e não as conheço. Abraço o longo cabelo negro que me serve de abrigo, que me ensina enquanto cresce, que recorda e viaja, e não o conheço.

Aproximo-me do rio jovem que fui, aproximo-me de uma lagoa improvável que desaguou no glaciar imenso e que espelha o meu rosto magro, escuro e cansado, e não me reconheço.

Este é o momento em que todas as memórias me foram roubadas. Este é o momento em que a mãe montanha saboreia uma magra vitória ao ter conseguido retirar de mim todas as histórias.

Este é o momento de caminhar vazio, ausente, afastado de todas as realidades e de todos os destinos prováveis. Este é o momento de reabrir a coragem e de tentar descobrir de novo quem sou.

Este é o meu rosto agora, estes os meus membros, esta é a minha imagem e o meu corpo. Rapaz-pássaro sem asas, perdido em Gomukh no centro da gelada neblina, sem protecção, sem memória, esgotado pela vitoriosa transformação que o resgatou do seu anterior corpo de rio sagrado. Essa é a única das memórias que ainda guardo. Como um veneno, cola-se ao céu-da-boca, amargo, e vai forçando a língua e as cordas vocais a repetir vezes e vezes e vezes sem conta as palavras da ilusão.

- Tu não abraçaste a condição sagrada de grande rio de vida. Tu não abraçaste a condição sagrada de grande rio da vida. Tu não abraçaste o teu destino e foste atrás da loucura dos teus intentos. Tu não abraçaste a condição sagrada de grande rio da vida.

Mergulho o rosto nas águas geladas de quem eu fui na esperança de poder dar descanso à língua e às palavras. Na cabeça continuam a trovejar como vulcões enlouquecidos. Fecho os olhos debaixo de água e medito. Resolvi mergulhar todo o corpo, voltar a ser quem fui por breve instante. O silêncio chegou, finalmente, nesta gelada situação. Medito mergulhado, sentado no fundo desta pequena lagoa sentado nas pedras que a forram e que me acolhem alegremente. Por debaixo do corpo as pedras erguem-se do fundo da lagoa carregando-me para fora dela, carregando-me para lá da neblina, carregando-me para lá de todas as estrelas, carregando-me para lá de todas as galáxias, carregando-me para lá de todos os desertos, carregando-me de volta ao vale onde se encontram guardadas as asas de todos os rapazes-pássaro que existiram, existem e existirão.

O cansaço desapareceu, as dores, as feridas nas mãos e nas pernas e nos joelhos cicatrizaram. O frio amansou, as palavras repetitivas deixaram de se escutar e o momento é agora de lembrança.

Medito. Continuo sentado de pernas cruzadas nas pedras voadoras da lagoa de Gomukh. De olhos fechados vejo mais do que alguma vez imaginei. Sei onde estão guardadas todas as asas. Sei quem são todos os rapazes-pássaro e sei quais deles eu fui e ainda serei. Sei quem são todas as princesas e sei que, agora, é o momento de voar, é o momento de resgatar as asas sonhadoras e seguir viagem até onde a minha vontade de solidão e liberdade me quiser fazer chegar.


O rio não é o meu corpo

Deixem voar o rio pelas estrelas

Deixem o rio ser as estrelas

O rio é um caminho

O rio é a origem e o fim

E o destino


Não quero ser o rio

Quero ser pássaro

Este é o momento de fugir

Voltar ao corpo voador

Voltar ao sul


Descer pelo glaciar

Até à origem de quem sou

De quem já não sou

Neste momento


A lagoa de Gomukh

A misteriosa lagoa de Gomukh

Onde respiro

Onde me vejo e não conheço

Onde me escondo

Onde medito


Mergulhei nas águas geladas

De quem já fui

Desci até às pedras

E meditei


Recebi as memórias perdidas

De novo

Esquecidas

Roubadas pela montanha mãe


As pedras da lagoa de Gomukh

Carregaram-me para lá da neblina

Para lá de todas as estrelas

Para lá de todas as galáxias

Para lá de todos os desertos


Carregaram-me até ao vale das asas perdidas

Onde o frio acalmou

Onde o tempo é de lembrança


Onde sei quem sou

Quem fui

E quem serei


Este é o momento de voar

E enfrentar a solidão

.

Sem comentários:

Enviar um comentário