quinta-feira, 16 de junho de 2011

MOMENTOS 16


15 de Junho de 2011


Sigo pelo coração das nuvens em direcção ao Norte. Subi na vertical para lá das altas escarpas que delimitam o vale a nordeste. Fiz o percurso de volta até Gomukh, sobrevoei a lagoa, sobrevoei todo o glaciar, sobrevoei os alicerces da montanha-mãe, subi mais alto que os seus cumes régios onde o grande rio sagrado foi recebido e aplacado. Planeei esta primeira etapa pois queria sobrevoar o tecto do mundo, observar a majestade das cordilheiras e eis o momento em que esse querer se concretizou. O frio não penetra no corpo protegido pela sagrada marca azul e as asas rejuvenescidas são imortais.

O silêncio reina nesta morada. Os ventos gelados fazem bailar as nuvens pelos vales, pelos picos, pelas encostas escarpadas, pelas veredas que continuam a aumentar a majestosa grandiosidade das alvas esculturas.

Tenho de parar no Everest. O ar rarefeito cansa os peregrinos que por aqui se aventuram e tantas vezes os esmaga. Antes de chegar ao mais alto lugar dos Himalaias deixo as asas transportarem o meu corpo azul ao sabor das correntes. Não existem outros pássaros por aqui, pelo menos não a estas altitudes. Controlar o voo é quase impossível. Tal ousadia é dada de presente aos poucos rapazes-pássaro que por aqui se aventuraram. As montanhas gigantes e o clima inóspito que as rodeia afastam os mais bravos de entre os bravos. O desafio é tremendo, as vidas são colocadas em risco perante a dimensão da viagem. A conquista do tecto do mundo é o troféu que muitos peregrinos e viajantes ambicionam. Muitas vidas ficaram perdidas nos Himalaias.

O tecto do mundo, improvável e inóspito lugar.

Este é o momento em que honro quem sou. O momento em que deixo de respirar e me transformo no próprio ar rarefeito que aqui se esconde.

Este é o momento de meditar.

Todos os silêncios nascem deste lugar. Aqui é também morada dos sons das histórias mais antigas, mas não da primeira. Aqui se escuta a respiração de todos os habitantes do planeta. De pernas cruzadas escuto, observo e medito.

Tal como no grande rio sagrado, as primeiras gotas e as primeiras palavras encontram-se aqui. Este é o momento de todos os princípios. As primeiras gotas vão eternizar-se neste cume, como as suas irmãs ali mais abaixo. As neves eternas guardam as palavras que os peregrinos aqui vêm resgatar. Ninguém desce igual a como aqui chegou. O mundo e a vida passarão a ser diferentes de agora em diante.

Este é o momento de mudança.

Crescer.

Da mais improvável viagem retirar as lições importantes, ímpares, como as que se encontram guardadas na primeira história.

Quem sou agora que atingi o tecto do mundo e aqui medito?

O rapaz órfão, sem família, que do lixo e no lixo se mimetizou, que do lixo e no lixo fez a sua casa e que no lixo se transformou?

Um nómada aventureiro por onde todos os odores putrefactos passaram e que deles fez mundo e oração?

Já não sou o mesmo.

Desci por detrás das raízes da solidão arrastado pelos milhões de peregrinos do Ardh Kumbh Mela. Fui transformado porque queria ser quem sou.

Este é o momento em que a menina princesa do Ganges pára por instantes de fabricar galáxias. O tempo é como as águias e os falcões. As palavras da primeira história passaram por aqui.

As palavras da primeira história saíram do fundo dos oceanos, rasgaram as entranhas das escuras profundezas para migrarem moldadas pelo deus do tempo até ao alto Everest. Ao crescerem com ele e através dele, transformaram o mundo e transformaram as histórias, gravaram-nas em todas as rochas, nas raízes, nos vales, nas planícies, nas pedras e nas areias e no próprio sal que tempera os oceanos.

Voei até aqui. Esta paisagem não me é desconhecida.

Nunca tinha aqui estado mas esta memória já me pertencia e tinha-me contado esta história, esta exacta história que estou a viver.

Nunca estarei no Everest, nem nele meditarei. Se tal não acontecer, este momento fica aqui perpetuado, pelas palavras, para a eternidade.

No Everest meditarei.


Voei rumo ao tecto do Mundo

Para Nordeste

Para lá de Gomukh

E da montanha-mãe


Planei com o meu corpo azul

Por cima das cordilheiras

Ao sabor das correntes

Honro quem sou


Transformo-me no ar rarefeito

Medito

Assisto ao nascimento dos silêncios


O coração

A respiração de todos os habitantes do planeta

Sente-se aqui


Momento de todos os princípios

Momento de mudança

De transformação


Do fundo dos oceanos

Viajaram as palavras da primeira história

Migraram moldadas

Pelo deus tempo se transformaram

Gravadas nas rochas

Nas raízes

Nos vales

No sal que tempera os oceanos


Já estive aqui

Nunca estive aqui

No Everest

No tecto do Mundo

Para a eternidade

Meditarei



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