domingo, 19 de junho de 2011

MOMENTOS 17


18 de Junho de 2011


O que me espera após o Everest? Esqueço as nuvens que me acompanham, esqueço que são como o vento que me orienta os destinos da viagem. As aldeias perdidas escavadas nas entranhas das montanhas peregrinas, aguardam por mim.

Vou planar por mais de cem dias por sobre os cumes sagrados dos Himalaias. Esconder-me-ei nas neblinas, escutarei os lugares onde se recolhem todos os silêncios. Saltarei de cume em cume até que em todos eles deixe a minha marca. Uma pequena pena ficará depositada para que fique arquivada a memória, o momento da minha passagem. Em cada um dos cumes meditarei, em cada um contarei esta história e de cada um receberei como dádiva aquela que me irá ofertar.

Desenharei pelos céus dos Himalaias círculos perfeitos, letras e palavras. Nestes céus deixarei uma marca eterna pois todos os pássaros o fazem desde o início dos tempos. Estes senhores altivos, estes cumes rudes, agrestes, que tanto sabem e tanto ensinam, ajudar-me-ão a acreditar.

Porque nasci sem saber quem sou, porque me abandonaram, porque vivi como uma parcela inútil de lixo, invisível e desorientado? Nos anos em que não existi, aprendi a dor, escutei o ruído das feridas que arranham a alma, que a fustigam, que a rasgam para que nunca sare e passe a fazer parte de nós. Seguimos invisíveis pelo tempo, pelas pessoas que, invisíveis como nós, atravessamos. Olhamos o chão, nunca o céu ou o horizonte. Caminhamos vergados, derrotados, sujos, e o cansaço existe logo ao acordar. Esfomeados, grotescos, humanas figuras sem rosto nem identidade, sombras amargas e esquecidas que no lixo e do lixo se perpetuam.

Porque fui assim? Porque aconteceu a minha existência dessa maneira? Esses foram momentos de cansaços, de tristeza e solidão. Esses foram os caminhos em que a desgraça e o medo moldaram parte da pele e dos ossos de quem sou.

Ainda escrevo e falo e ensino parte dessa história. Em cada pena das minhas asas renovadas existe parte dessa história e desses dias. Bato violentamente as asas na esperança de derrotar essas lembranças, de as sacudir para longe e nunca mais ter de as suportar.

Os sábios cumes sagrados dizem-me para não o fazer. Isso não resulta pois a minha vontade ultrapassa a das palavras que escuto. Continuo a bater as asas, não para voar mas para esquecer.

Este é o momento em que a memória regressa.

Crescer é recordar, é suportar a dor e a angústia.

Crescer é ser derrotado pelo deus do tempo ou dele fazer nosso aliado.

Crescer é alegria mas também é solidão.

A lua faz-me companhia. Recordo a tua voz e o teu sorriso sempre que a vejo e me acompanha. As noites acalmam-me mais do que os dias e as suas vestes de veludo abrigam-me este voo nocturno que aprecio. As montanhas de noite parecem crianças adormecidas. Estão tranquilas, serenas no seu pequeno leito, alimentadas e amadas pelas mães protectoras.

As sábias montanhas sobrevoadas foram essas crianças inocentes agora tão amadas. O tempo venceu-as, retirou-lhes a nobreza infinita da infância mas dotou-as de majestade e imponência, de sabedoria e de grandeza.

Este é o momento de meditar.

No cume da sexagésima terceira montanha cruzo as pernas, observo, escuto e medito.

O sonho habita aqui como uma criança.

Este é o retiro de todos os sonhos. As montanhas sagradas, as sábias montanhas sagradas, idosas criaturas, foram inocentes crianças amadas e embaladas com o amor infinito de suas mães.

Essa história foi-me assim contada no alto majestoso desta sexagésima terceira montanha. O sonho habita aqui.

Na escuridão da noite fria da cordilheira, a lua vence as nuvens que a cobriam e ilumina o céu com o seu sorriso. O rosto da menina princesa acompanha as minhas memórias nesta visita.

- Não temas a noite, a velhice, o peso amargo das lembranças da infância. Terás ouro e virtudes ímpares para resgatares. As histórias que te forem contadas, as histórias que receberás e que em troca ofertarás, te farão cada vez mais corajoso e mais audaz. Não temas a noite, a morte, a solidão. A existência perpetua-se para lá dessas evidências. As montanhas crescem porque nelas são depositadas todas as dores do Mundo, das galáxias e do Universo. O tempo é de lembrança, por isso dói. As recordações não deviam estar a acontecer. És jovem e o que premeia a coragem é, para além da virtude, a consciência do sublime e do poder do tempo e da Monção. Vais escutar o crescimento da montanha. Vais escutar o crescimento de todas as montanhas, da cordilheira e até da mais alta das planícies. Vais aprender a escutar o teu próprio crescimento, como o do livro, como o crescimento do primeiro livro onde foi escrita a primeira de todas as histórias. Este é o lugar onde habitam todas as dores do Universo. Quando delas resolveres abalar, seguir viagem para onde desejares, deixarás para trás as tuas mágoas e essas memórias cansadas. Para crescer terás de te libertar, terás de abandonar para sempre essas lembranças, os pesadelos que carregam peso às tuas asas. Com essas dádivas farás crescer as montanhas e libertarás o cansaço que trouxeste de Allahabad, dessa cidade que não era tua. O teu caminho é este que agora percorres. A voz que escutas é a minha voz amiga, estas são as palavras que irás escrever e que para sempre perpetuarás. As histórias, todas as histórias como a primeira, são como estas montanhas que te recebem. As palavras saíram delas, cresceram, alimentaram-se das histórias que escutaram. Regressaram através dos mais diferentes caminhos ao colo orgulhoso da montanha-mãe. Aqui vieram depositá-las fazendo-a crescer. Observa, escuta e medita. Aqui terás de te desfazer das primeiras histórias. Ficarás mais leve, mais puro e ajudarás a fazer crescer estas montanhas. Assim acontece desde sempre, desde o primeiro dia em que foi escrita a primeira de todas as histórias.

.

Sem comentários:

Enviar um comentário