terça-feira, 14 de junho de 2011

MOMENTOS 15


13 de Junho de 2011


As ilhas, todas as ilhas que somos, encontram-se por uma única vez reunidas num imenso continente antes de partirem, antes de se separarem.

Neste vale lhes são fornecidas as asas pela primeira vez ou recebem as antigas de volta. Esse breve encontro não fica guardado em nenhuma das memórias dessas ilhas. Esse encontro fica perpetuado enquanto momento em mais uma história guardada no coração das pedras de Gomukh. Muitas habitam o vale depois da mágica viagem. Todos os rapazes-pássaro são contemplados com a mesma travessia que os levou até à longínqua morada das suas princesas e que aqui os fez regressar.

Separei com orgulho e de forma meticulosa todas as penas de minhas asas. Tratei delas com carinho. O brilho cativante demorou seis dias a regressar mas agora cintilam em todo o seu esplendor.


14 de Junho de 2011


Nasce um novo dia.

Deitado sobre a relva aconchegante observo o alvorecer tapado pelas asas protectoras. Foi longo e difícil o caminho percorrido até este momento.

Uma primavera em pleno pintou o vale que me recebe numa multiplicação de cores e de fragrâncias.

Se o lugar onde residem todos os sonhos existir, aqui e agora é o local e o momento onde a realidade atinge essa improvável condição. Na natureza existem extraordinários lugares. São únicos os momentos em que nos cativam e acabamos por os deixar desaparecer pela louca velocidade com que vivemos.

Agora é o tempo de admirar.

O dia nasce, a relva aconchegante e perfumada convida, as deslumbrantes cores do vale florido formam uma pintura delicada desde o lugar onde repouso até onde a vista alcança. A montanha mãe e o rio que já fui respiram o mesmo ar, acontecem aqui também, seguram o que restou das mais recentes memórias. O grande rio sagrado se encarregará de as contar ao longo da sua perpétua jornada, irá acrescentá-las a todas as outras já contadas até à primeira.

Agora é o tempo de meditar.

Sou o rapaz-pássaro que sempre fui. Sem pressas, sem desejo de mudanças, sei a morada da menina princesa do Ganges, sei que a amo, sei que é minha amiga, sei usar as asas que já preparei, sei quem sou e quem já fui, sei os caminhos que percorri e as histórias que contei, sei que fui riacho, corrente, cascata, o jovem rio e a lagoa, sei que não queria ser o rio sagrado, sei que quero continuar a criar histórias, que as desejo tecer, contar, burilar, sei que a montanha mãe perdeu o desafio e que as pedras da lagoa de Gomukh são minhas aliadas, sei que posso voar sempre que entender, em qualquer momento, a todo o momento, por todos os momentos, sei que a solidão existe porque sou ilha, sei que todas as ilhas já foram outrora continente, o maior de todos os continentes sagrados, sei que a sua separação era inevitável e aconteceu, sei dos pássaros, das garças e dos falcões, sei toda a arte que os faz levitar, sei o fosso entre a grandeza e a nobreza e o que é vil, falso e quebradiço, sei a cor dos néctares e da verdade, sei a que sabe o veneno das traições, sei que tudo tenho de aprender, sei que ensinarei o que já sou, sei que quando a neblina nos toca aflige, sei que o calor dos raios do deus sol sai vencedor, sei do mal, da raiz do mal e das loucuras, sei quais os destinos de todas as asas, sei quantas rugas moram nas mãos sagradas e sei que todas as histórias têm fim.

Agora é o tempo de fruir.

Fruir o início deste dia, admirar a beleza que tudo envolve, a paz, a luz, a primavera esplendorosa, a dança dos insectos, o fragor musical da vegetação, este é o momento de dar uso à marca azul para fazer parar o tempo e descansar.

Deitado sobre a relva aconchegante observo a aurora tapado pelas asas protectoras. Assim congelei este momento e o escrevi na única pedra da lagoa de Gomukh que a mim próprio entendi oferecer.

O sol parou no horizonte.

Aguardo a mensagem, agarro a relva e cheiro-a e sorrio.

Sou de novo rapaz-pássaro. Fecho os olhos e aguardo pela vontade que me fará de novo deixar correr o tempo.

Medito.

Aqui não existe dor, nem culpa nem maldade. Aqui o momento é de beleza. Respiro a natureza, a luz, a brisa que embriaga. Sento-me a olhar o sol que paira no céu da jovem manhã. Sento-me e observo o longe aqui tão perto. Sento-me e tento ler as mensagens escondidas, tento interpretá-las e relembrar outros momentos.

Os sonhos desaguam neste vale das asas escondidas. Por momentos, e passados os dias necessários a tratar devidamente as minhas asas, recebo em dádiva este lugar. Para além do sol que permanece imóvel no início da montanha, a lua aparece em metade no céu laranja da manhã.

O sol e a lua em metade, afastados entre si por uma trintena de nuvens aguareladas. Com a mão levantada toco na imagem da lua que paira alta nos limpos céus. Tapo-a com o indicador direito e arrasto-a mentalmente colocando-a entre o sol e o planeta. A lua cede e avança atrás da vontade nascendo neste dia um imenso eclipse. Arrefeceu a primaveril manhã com este evento.

Medito sob o eclipse que ajudei a criar.

A lua e o tempo obedeceram-me.

A sagrada marca azul, poderosa, permite-me brincar com os sistemas galácticos, com a luz do planeta, com o tempo e com as marés.

Sorrio e medito.

As asas abrem-se vigorosas.

De pernas cruzadas com a vida toda pela frente, com os membros revitalizados, vou transformar o que falta desta história em tudo o que pretendo visitar.

Partirei deste fascinante lugar. Voltarei a acender o tempo e recolocarei o satélite na correcta posição. Vou procurar quem não conheci, vou voar por prazer, vou planar por sobre os cumes das montanhas, vou aventurar-me nas selvas mais inóspitas e pelos mares mais revoltosos, vou abastecer o coração com as histórias que me serão apresentadas, vou deixar-me embalar pelas correntes, deixar-me arrastar pelos ventos e ciclones, vou à deriva pois sei onde nascem e como são criados, vou assim deixar-me orientar.

Levanto-me.

O corpo rejuvenescido aquece ao deixar de novo o tempo avançar. Coloquei a lua onde devia, estiquei os braços, sacudi as asas, coloquei-me nas pontas dos pés com a cabeça levantada, ergui os olhos na direcção do céu e abalei.


Corro

Deitado na manhã

Por sobre o manto verde

Refrescante

Corro pelos céus


Deitado na manhã

Por sobre o manto verde

Recebo em dádiva este lugar


O sol plácido

A lua em metade

Arrastei

Criei um eclipse

Pois a lua e o tempo

Obedeceram-me


Brinco

Deitado na manhã

Por sobre o manto verde

Com sistemas galácticos

Com a luz do planeta

Com o tempo

Com as marés


Abri as asas vigorosas

Vou procurar quem não conheci

Voar por prazer

Atravessar selvas

Mares revoltosos


Vou à deriva

Olhei o céu

E abalei

.

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