domingo, 26 de junho de 2011

MOMENTOS 20


22 de Junho de 2011


Não existem portas, escadas, só janelas.

Não existem ruas, becos ou vielas apertadas.

Aqui não se sabe onde começa e acaba o espaço de cada um.

As montanhas estão ocas. Dentro delas, como um imenso formigueiro humano, navegam os habitantes destas cidades perdidas sem que ninguém do exterior perceba vida neste lugar.

Aos poucos e poucos juntam-se às dezenas, depois centenas, depois milhares. A minha chegada foi um total mistério. Não conheciam nenhum habitante do Lado de Fora, os medos que lhes escapam pelos poros disso dão entendimento. A multidão reuniu-se para me ver. Agora, para além das crianças, toda a população destas províncias cravadas nas profundezas das pedras me veio receber. São mais os olhares receosos que os de alegria ou satisfação pois o desconhecido assim provoca.

As crianças fazem-me sinais para lhes mostrar as asas que me ajudaram a chegar. Não imagino como fazem para daqui sair ou para aqui conseguirem regressar visto não gozarem da faculdade de voar. Estão nestas ilhas criadas nas montanhas para se protegerem mas são prisioneiros da sua criação.

Terei de lhes contar todas as histórias.


23 de Junho de 2011


Momentos.

Atravessamos as pontes que nos escondem de outros para deixarmos de ser ilhas.

Serão estes os prisioneiros que habitam escondidos dentro das próprias pedras? O que construíram para os proteger, neste inóspito lugar, acabou por se transformar nas celas que os abrigam. Escuto o medo, as fraquezas, os receios e os pavores. Estes ilhéus necessitam ser libertados desta condição tal como na história dos cinco companheiros que viveram enclausurados no coração das pedras.

Se fui o quinto prisioneiro que tombou das alturas ao procurar o radioso caminho da liberdade e da verdade, se esqueci as fraquezas, a dor tremenda dos ossos quebrados, as mágoas e a solidão, foi porque consegui transformar a violência a as lamas cansadas das margens do rio sagrado em misteriosas aliadas.

Rolei, angustiado, até ao fundo do escuro precipício. O imenso sono provocado pela queda contou-me todas as histórias e também esta que me trouxe até aqui. As fraquezas, os ódios e um frio implacável marcaram as relações dos habitantes das montanhas. A miragem que os orientou continha a cor das brancas asas que nos afastaria do alto da imensa povoação. Na história do meu sono tu aparecias, misteriosa e sorridente.

-Terás de ser discreto, mais do que os teus companheiros, para conseguires vencer os desafios da desgraça. Não te será permitido decifrar nem tão pouco lutar contra o invisível poder que se esconde no coração das pedras. Elas te ajudarão, te farão alcançar a minha morada e te dirão como funciona o universo e qual a sua dimensão. Elas se transformarão e te transformarão nesse passeio, se iluminarão, com reverência abrandarão a velocidade da viagem para que as majestosas rochas possam perpetuar no infinito a vossa passagem. Elas se ligarão com essas esculturas voadoras que do cinzento ao esverdeado canal luminoso vencerão o vazio que vos separa. A viagem continuará, depois, com a mesma velocidade.

Quando acordei, de pernas, braços e costelas partidas, estava ornamentado e perfumado com bálsamos e perfumes e as crianças mais velhas colocaram-me num nobre corcel mostrando-me em festa por toda a província. Os anciões colocaram-me colares, embelezaram-me com grinaldas floridas e reforçaram-me todas as pinturas. Recuperei a cor azul índigo desde a cabeça aos pés deixando as asas com a cor natural que lhes pertencia. Dez dias de festividades terão agora o seu início, renovando-se os corações das gentes em brilho e alegria.

Esta história já me tinha sido contada. Estas histórias e a outra, que afastou os prisioneiros da clausura para uma liberdade atribulada. Com a ajuda da menina princesa do Ganges, do poder sagrado da marca azul e dos misteriosos canais do universo que o mantém em constante mutação, igual mas renovado em histórias e emoções, recordei este momento.

Terei de lhes contar que tudo começou aqui, no coração das rochas onde são prisioneiros-ilha sem o entender.

Agora medito.

Ergueram-me às suas costas e de mim bebem esta feliz vitória obtida ao deus da morte. Um dos seus, depois de uma aparatosa queda de centenas de metros pelas verticais veredas das montanhas, conseguiu sobreviver miraculosamente mantendo-se numa estática condição por mais de sete dias. Os sonhos que o mantiveram quente contaram-lhe as histórias que o trouxeram de volta. A festa durará os dez dias consagrados. As outras histórias terão de ser contadas para que não mais os prisioneiros-ilha se tentem libertar desta maneira desesperada.

Possuo a marca poderosa, a sagrada marca azul que me permite alinhavar o tempo e aqui irei permanecer.

Os jovens serão as novas pedras, como as que vivem no glaciar de Gomukh, como as que forram o leito da sua lagoa. Serão eles a memória e nenhuma tempestade os vencerá, engolirá ou destruirá.

Do alto da montanha onde habitam descerão, por vontade sua, caminharão por todos os recantos do planeta forjados como deuses. Voarão com esperança pelo meio das neblinas, pelo denso nevoeiro do rio Ganges, e farão nascer a Luz do lado de lá de todas as muralhas até que o doce da amizade se espalhe eternamente e a todos possa visitar, por um momento.


As histórias misturam-se

Cruzam-se

São muitas

São sempre a mesma


Medito

Acordo

E a viagem continua com a mesma velocidade

Esta história já me tinha sido contada

Os sonhos mantiveram-me quente

Trouxeram-me de volta aqui


Recuperei o azul índigo da cabeça aos pés

Transformarei os jovens em novas pedras

Em memória

Que nenhuma tempestade derrotará

E a amizade será espalhada

Neste momento

todos visitará


24 de Junho de 2011


Antes de tentar entender as duvidas que me aguardam, o povo das alturas perpetuará as primeiras histórias através dos dedicados dedos dos mais hábeis escrivães.

Quero que os momentos sejam sempre únicos.

A luz que penetra no coração das rochas desembrulha na vida os seus receios e castigos em formas elementares. Os sonhos de mudança, viagens por realizar, medo do desconhecido, a voracidade do deus do tempo, o desassossego, as planícies longínquas por visitar, o planalto ali tão perto, junto ao leito do rio serpente, as aves que bailam nos céus por cima da povoação, os ninhos, as conversas que a todos une aos serões, a perpétua repetição dos dias e das noites sempre iguais a viver como eremitas prisioneiros, como homens e mulheres-ilha onde só aos mais jovens parece ser permitido ousar pensar para lá das penumbras, para lá das altas veredas que os separam do mundo dos do Lado de Lá.

A minha chegada, o meu regresso, provocou alteração às rotinas. A primeira vitória foi obtida sobre os deuses do infortúnio. Os passos dos mais nobres fizeram-se escutar como nunca antes. Os trajes encheram de colorido os espaços onde antes existiam só cinzentos. Músicos alegraram os espaços públicos com as suas percussões que levaram ao transe muitos dos aldeões. O meu corpo debilitado foi transportado com alegria como troféu dessa vitória sobre os deuses do infortúnio. Não sentia dores, nem frio, e as imagens desta jubilosa festa surgiu doce no centro da neblina.

Tenho saudades tuas, da melodia da tua voz, e este momento que agora vivo é como se não fosse eu a participar na aventura. É como se fosse apenas mais uma das incontáveis histórias que habitam no coração das rochas e que me desejaste contar. Tenho saudades de te observar em silêncio entretida com o teu jogo predilecto, uma criança feliz a construir galáxias, universos, ciclones coloridos a rodopiar perfeitos na palma da tua mão. Tenho saudades das histórias que me contas, dos milhares de milhões de histórias que me ensinaste, saudades do momento em que me ofertaste esta sagrada marca azul que me salvou, não uma, não duas, não três mas todas as vezes em que eu já aconteci. Tenho saudades do próprio rio sagrado em que me transformei e tenho saudades do momento em que a essa condição renunciei, tenho saudades do vento, da chuva e das estrelas, da viagem efectuada através do tempo transportado pelas pedras da lagoa de Gomukh. Tenho saudades dos desertos, das encostas, dos céus do planalto das asas escondidas, do aroma da erva fresca, dos pastéis que coloriam até ao horizonte os seus jardins. Tenho saudades dos meteoritos gigantescos do tamanho de mil planetas onde tudo pode acontecer, saudades do sal e dos açúcares das montanhas, dos brancos eternos e da solidão. Tenho saudades de quando aprendi e recordei a primeira vez. Saudades dos passeios que tentei fazer sem asas e dos outros que com elas pratiquei. Tenho saudades do escuro e do brilho que depois dele acontecia. Saudades do tranquilo regato, do cristalino néctar, da melodia das garças e dos desenhos delicados dos falcões, dos poemas que as histórias me serviam e das chuvas e tempestades das monções. Tenho saudades de todos aqueles que já fui, saudades do pai e da mãe que não conheci, saudades dos irmãos e de todos os parentes anónimos que possuo e saudades da mágica lagoa do glaciar de Gomukh. Tenho saudades de esculpir o tempo, saudades da história que vou poder construir, saudades dos tranquilos finais de tarde em Varanasi, das descuidadas e ruidosas máquinas reluzentes de Allahabad. Tenho saudades dos primeiros dias em que nos encontrámos, do primeiro dia em que me sorriste. Tenho saudades do teu perfume, de quando me pintaste a marca azul que nos pertence, saudade do momento em que o Ganges se transformou e de quando eu próprio fui o grande rio. Tenho saudades de quando voei feliz pelas montanhas, saudades das dores tamanhas e dos cansaços, tenho saudade de tudo quanto é vida, pois ela é sempre.

Este é o momento de meditar.

Serei parte das palavras contidas na primeira história, parte do que ajudarei a reconstruir.

A história de que o tempo não tem fim nem tem início, tal como o rio, a água que o serve, a chuva afectuosa, as eternas brancas neves onde renasce, onde se cumpre mais uma das etapas.

A história de que a vida não tem fim nem tem início, tal como uma viagem, na galáxia que a serve, nas pedras gentis, nos eternos meteoritos gigantes que a abençoam, que a ajudam a renascer e onde se cumpre mais uma das etapas.

A história de que as histórias não têm fim nem um início, tal como as palavras, no coração das pedras onde se arquivam, em letras transparentes e frágeis, renascem pelas vozes de quem as participa fazendo assim cumprir mais uma das etapas.

A história de que o tempo, a vida e as histórias não têm fim nem um princípio. A sagrada marca azul que me ofertaste permite-me jogar com as palavras, com as histórias e com o tempo. Regresso onde já estive e ao que fui, relembro o doce e o amargo dos momentos, observo-me inocente e já senhor, voo rapaz-pássaro dando uso às minhas asas, venço os desertos, as montanhas e o equador. Atravesso oceanos sem ruído, admiro as multidões e os peregrinos. Saltito de cume em cume e neles avanço, me transformo, cresço e reflicto.

Esta é parte da primeira história que terei de transmitir.

Os jovens da montanha serão transformados e a palavra primeira difundirão. Os séculos serão minutos e os minutos séculos serão. As neblinas deixarão de tapar o cume das montanhas e os horizontes ficarão mais perto e coloridos. A aventura deste povo e destas gentes começará, se perpetuará muito para lá do interior habitado das montanhas.

Como o primeiro de todos os dicionários, assim que as palavras da primeira história forem escutadas os rostos se transformarão, as almas dos peregrinos serão iluminadas e por toda a planície se plantará a raiz deste momento.

Tenho saudades tuas meu amor. Sei onde habitas lá distante junto às longínquas primeiras luzes do universo. Sei que este ainda não é o momento para te visitar.

O meu coração é teu e os dois fazem um só. Sentem e sabem e entendem os momentos. Noutro dia, numa outra época, esta história será finalmente interpretada.

A solidão não existe, não tem princípio nem fim, tal como o tempo, a vida e as histórias. Os momentos de solidão trazem-me de volta o teu rosto e o teu sorriso.

Esta história não existe, nunca aconteceu. O poder sagrado da marca azul faz parar o tempo, girar o tempo, pode até transformar o tempo mas não consegue derrotar a solidão.

Por momentos voltei às águas do Ganges no dia em que nos conhecemos. Salvaste-me com um sorriso, uma história, uma emoção. Contaste-me parte do que tinha sido gravado na primeira de todas as histórias e apontaste na direcção do céu onde construíram a nossa casa na face iluminada da lua.


O meu amor

Menina princesa do Ganges

Revolve as galáxias

No centro da sua mão


Os séculos são minutos

Os minutos em séculos se transformarão

O tempo é esculpido

Como foi o glaciar em Gomukh

Como o Ganges

Como as palavras

Até as da primeira história


E como as histórias

Não têm fim

Nem início


No coração das pedras

Arquivadas

Guardam saudades

Momentos

Em letras transparentes e dedicadas


Regressam ao que já foram

Relembram

Constroem os avanços

As viagens

E transformam os minutos em séculos

E séculos em partículas de segundos


As palavras da primeira história foram escutadas

Iluminaram toda a planície

É uma história de amor

Construída na face iluminada da lua

Onde dormimos

.


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