quinta-feira, 7 de julho de 2011

MOMENTOS 23


6 de Julho de 2011


O céu ilumina-nos com os primeiros salpicos de luz que nos acordam. Renova-se corpo e alma e as asas desenham virtuosas linhas na preparação de mais uma jornada.

Este é momento de voar.

Saí sem rumo no prazer simples de descobrir horizontes, de refrescar o rosto nas alturas, de pairar despreocupado por sobre o grande planalto tibetano, de rodopiar nas vertentes escarpadas que dos Himalaias olham para Norte, de permanecer esquecido no meio das densas nuvens altas, de praticar picados arriscados pelas lagoas que polvilham o que a vista alcança, de me esconder no meio dos bandos de grous que migram nestas latitudes, de me aproximar da vegetação que o Verão revigorou, de me lançar ao encontro das solitárias aves de rapina, de abraçar no escuro as noctívagas furtivas criaturas, de descobrir as secretas paisagens onde nenhum homem antes conseguiu chegar, de escutar atentamente os músicos que transformam os silêncios em sinfonias naturais, de relembrar todos os dias o majestoso planalto das asas escondidas, de receber a dádiva imensa deste poder azul que me ilumina as manhãs, de me lembrar de ti e de onde moras, de cheirar os perfumes das mais recentes colheitas, de voar e voar e de ao fazê-lo meditar planando à deriva, de descer ao entardecer na procura do abrigo que me receberá, de recordar parte desta história construída com todas as outras histórias que me arquitectaram, de soluçar e chorar convulsivamente, de me rir sem sentido, de fechar os olhos e me abandonar numa queda livre vertiginosa que não pretendo controlar, de conseguir ter as forças necessárias para evitar o trágico desfecho e voltar a ser o meu próprio dono, de sonhar os meus passeios, de continuar a manter a companhia das montanhas que me seguram, de salvar os animais mais indefesos que o predador voraz quer alcançar, de ser o régio invisível falcão que serpenteia nos seus domínios infinitos, de manter acesa a nobre chama da virtude, de estar feliz pelo cumprimento das promessas, de ter ajudado a perpetuar as histórias que me foram ensinadas em Gomukh, de fazer perpetuar até partes da primeira, de ter sido solidário para com as crianças e os idosos, de ter feito parte das histórias contadas, de me ter mantido rapaz-pássaro e ter vencido os desafios apresentados, de ter renunciado à condição divina de rio sagrado, de me ter encontrado em histórias que não as minhas, de regressar a casa sempre que recordo o teu sorriso, de voar sem destino num planar constante abrigado pelas sombras das montanhas, de querer saber apenas o que cada dia tratará de me ensinar, de jogar o jogo simples que as grandes asas brancas me proporcionam, de não conseguir deixar de me espantar pelo brilho ímpar do azul índigo do meu corpo, de conseguir manter afastado os medos, os receios e as negras vontades, da voltar a Allahabad nos fugazes sonhos de quem fui, de desejar que esta história-sonho não termine, de imaginar formas de chegar onde já estive sem nunca estar.

Este foi o momento de voar.

Plano neste final de tarde tendo como companhia a rudeza da paisagem árida e as imensas montanhas. Rumei, sem querer, na direcção do Oriente.

Voei desde as montanhas escavadas onde habitei e onde gerações de escribas perpetuaram as histórias como se nas próprias pedras as tivessem arquivado. Os primeiros mensageiros foram os oito irmãos de sangue que as transportaram até onde as forças e coragem permitiram. Multiplicaram-se ao ensinar milhares de novos mensageiros que se encarregaram de transmitir as mensagens que fazem hoje parte de todas as províncias.

Desde então não cessam de se perpetuar. Transfiguram-se, crescem como um ser vivo, como entidade invisível da qual todas as histórias do Mundo fazem parte. Todos os homens são parte integrante dessa história, são parte integrante dessa entidade invisível.

Sou o mesmo rapaz-pássaro mas sou outro.

As janelas e as portas estão abertas de par em par. As palavras renovadas da montanha-mãe entram por elas livremente e vêem-me visitar.

Este é o momento de regressar.

Este é o momento de regressar ao primeiro pensamento que me vez voltar a voar. Parar não é possível.

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