terça-feira, 26 de julho de 2011

MOMENTOS 32


26 de Julho de 2011


Os lobos atacaram as presas indefesas deixando as altas planícies manchadas para sempre com o vermelho do seu sangue.

Larniki encontrará o fim do caminho quando a lua descer, o sol pousar e a terra parar de rodar.

As montanhas prestam homenagem às histórias pois é aqui que os actores encontram refúgio nas jornadas, é aqui que vêm dar de beber à sede e alimentam as vozes que assim os moldaram.

Filho de Kunti e do deus sol, Karna cresceu sem saber quem era, sem sonhar que devia a sua existência aos deuses e que nele corria a seiva sagrada. Cresceu sem saber que combatia contra os seus meios-irmãos pois são amargas as sementes antigas que contêm todas as dádivas, são venenosas e destruidoras, são capazes de arrancar a eterna serenidade das montanhas.

Fechei os olhos e meditei.

Nas relações construídas entre irmãos, meios-irmãos, pais e filhos, entre cunhados, tios e sobrinhos, se foram conhecendo e crescendo as entranhas da maldade, dos ódios, da devoção, do amor, do desespero, do abandono, do vício, da dependência, da disciplina, do dever da renúncia e da mais sincera amizade. As histórias, tal como os actores, separam-se à nascença, como dois rios que nascem da mesma fonte e seguem caminhos separados. As águas são as mesmas, libertam-se do lugar encantado onde me encontro e em nada se distinguem. Percorrem os mesmos caminhos iniciais, de mãos dadas, mas cedo se esquecem dessa unidade ao separarem-se para seguir destinos opostos.

As pedras que sedimentaram os seus leitos são diferentes, as histórias que lhes contaram e ainda contam são diferentes, as paisagens que as vestem, os povos que neles habitam e as preces que são realizadas são diferentes. Mas são as histórias que dão a real dimensão da diferença entre os dois irmãos pois foram elas que os construíram de maneira tão diferente.

O rei Dhritharashtra renunciou à condição real pois entendeu que, como os rios e as montanhas, nem todos crescem para ser deuses.

As cordilheiras são as marcas divinas na paisagem e nada as consegue suplantar. O céu, acima delas, cobre-as, pinta a moldura que as embeleza mas muda consoante os seus humores.

Nos mosteiros do Butão o tempo parou.

Os sinos badalaram uma última vez antes que desse uso à marca azul que me ofereceste. Prefiro não saber que no início, como agora, é sobre o Poder que tudo se constrói. Aos diferentes tipos de Poder se verga o homem, se tem vergado e vergará pois acredita, como os rios que se separam após a nascente, que não nascem iguais.

Represento a vontade de mudança, como um rio de força. Rapidamente voltei a dar uso às asas oferecidas. Subi até aqui depois de anos e anos a caminhar como os verdadeiros peregrinos. Aqui medito e meditei acompanhado de parte das primeiras histórias e até da primeira.

Não sei quem sou, não descobri quem sou, não ainda, mas com Karna encontrei quem não tivesse resistido ao lado amargo das dúvidas, quem lutasse contra irmãos dominado pelas dores tremendas e solitárias que nos moldam crescimento e carácter. Ao parar o tempo o mundo pára, a solidão pertence-me. Necessito destas pausas para pensar em ti, pensar em nós, afastados da loucura nessa redoma sagrada que é a nossa morada lunar. O caminho até aqui foi longo mas ainda só vai no seu início. As luas continuarão a pintar as noites, os sóis a iluminar os dias, as monções a fazer crescer os rios sagrados, as neblinas a alimentar sangrentos desejos de vingança e o fogo continuará a cremar os corpos dos penitentes. As garças continuam a migrar, os falcões a caçar, os grous a transportar as histórias que se escondiam no coração das pedras até estes remotos lugares e os homens continuarão a procurar pelos primeiros contadores de histórias e onde é que estes se encontram.

Fazem-no porque não se conhecem e necessitam saber quem são.

Alguns são filhos de deuses, outros netos de deuses, outros são apenas contadores de histórias sem as quais os próprios deuses não existiriam, logo são também pais dos primeiros deuses e dos seus filhos primogénitos.

Entender a força que exerce o fascínio do Poder, não era o que aqui esperava vir encontrar nesta parte do mundo.

Os guerreiros combatem por motivos que nem os generais conseguem explicar. Os animais caçam para sobreviver, o homem luta, morre e mata em batalhas sangrentas para demonstrar o Poder da sua visão e dos seus deuses, luta por raiva, luta porque recorda as privações que os irmãos lhe causaram, luta por vingança ou pelo prazer de dar caça à sua própria existência. Luta por tudo, luta por nada, luta por não saber fazer mais nada.

Na lua fazemos amor, amamo-nos como se disso dependesse a existência de todas as coisas. Na lua somos um para o outro, meu amor, minha princesa do Ganges, e só assim pode esta história continuar. Se não pertencêssemos um ao outro já estaria morto e o meu corpo teria sido abandonado numa das margens do grande rio sagrado para onde fui arrastado pela multidão. A história teria ficado por contar, como tantas outras histórias. Deste-me a mão, deste-me força e um poder sagrado contido nesta mantra azul que nos pertence. Aqui na lua nascem todas as flores que nos alimentam. Assim ficamos azuis pois essa é a sua cor. Assim nos amamos em camas feitas de pétalas azuis, em colchões de pétalas azuis, em mantas brocadas com fios de pétalas azuis, como de pétalas são feitas as letras desta história resgatada ao coração das pedras da lagoa de Gomukh. As pétalas que nos cobrem pintam de azul o céu que adorna a terra e dá cor aos oceanos e a todas as águas que reflectem as pétalas da nossa morada lunar. A lua é azul, tão azul como as estrelas e o sol é a mais azul de todas elas. Os sonhos que temos são azuis e apagam todas as cores dos pesadelos, mesmo os que procuraram plantar nas vontades de nossos filhos. A neblina que os esconde é azul, impenetrável, de um azul tão escuro que tudo cobre e esconde.

O fundo da lagoa de Gomukh é azul e até as cores que, luminosas, cobriam as pedras voadoras que se encontram nos caminhos celestes que iam dar à tua outra casa já não são mais verdes, mas azuis. Este meu sonho é azul porque assim medito e nem os terrores que me causaram a história que aqui vim encontrar me apagaram a esperança pois pensei em ti.

Estávamos juntos na nossa morada lunar e acalmei.

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