sexta-feira, 15 de julho de 2011

MOMENTOS 26


12 de Julho de 2011 ( tarde )


Do alto da montanha de Kanchejunga observo todas as outras, e os vales e as falésias e os muitos glaciares e as altas montanhas do norte do Butão. Cruzo as pernas, fecho os olhos, escuto os riachos e a música que a natureza faculta. O sol irradia o seu calor nesta tarde de Verão e ao meu redor começam a desabrochar flores de cores garridas que depois se transformam em violeta, lilás, roxo e azuis muito escuros, mais escuros que o azul índigo de minha pele. No alto das neves mais eternas, escondidas debaixo deste manto espesso que cobre o majestoso Kanchenjunga, eis que esta surpresa feita de cores pinta o cume da montanha. Consigo escutar os bandos de grous que viajam em direcção ao Oeste, consigo escutar a chuva miudinha que cai nas montanhas do reino do Butão. Escuto a relva, as florestas milenares e o vento e a brisa que penteia as verdejantes árvores que se mantém iguais às suas avós do tempo das primeiras histórias. Consigo escutar as abelhas, o voo das borboletas, o labor das aranhas, as carpas que nadam nos velozes rios, os leopardos das neves, os iaques, mais bandos de grous, os corações das pedras nos vales e nas encostas escarpadas do reino. Estes corações batem ao mesmo ritmo e sabem das histórias pois também as arquivaram, como desejos, como desejos perpétuos que fazem rodopiar o planeta, que o ajudam a descobrir o dia depois da madrugada, após a escuridão da noite que apaga a luz. Ajudam a manter acesa a dúvida para fazer crescer as histórias, para ajudar a acrescentar mais e mais capítulos à primeira, para facultar as respostas mais válidas para as mais importantes de todas as questões.

O que acontece quando morrermos?

Que momento igualará o do nosso nascimento?

Que momento nos fará acreditar que tudo vale a pena?

Que momento nos ajudará a construir a história primeira?

Que momento nos dará as respostas para as dúvidas que carregamos?

Que momento nos ajudará a acalmar o filho que sente os medos, as dúvidas e os receios?

Que momento nos ajudará a acalmar as nossas dúvidas, medos e receios?

Que momento nos dirá qual a estrada a percorrer e de que estradas nos devemos afastar?

Escuto a tua voz, menina princesa do Ganges, nesta tarde de Verão no topo florido do Kanchenjunga.

- “As lamas, todas as lamas, foram criadas para permitir a construção de tudo o que existe. Imaginar o tempo como consequência dessa imensa primeira construção, como um pedaço de lama sujo retirado da imensidão. Lanternas de luzes esverdeadas aqueceram as lamas, das mais amargas às mais doces, desde as mais duras e ressequidas às mais moles e sedutoras. O tempo surgiu dessa primeira construção antes do espaço onde tudo corre e se espreguiça, surgiu para fazer dançar tudo o que dessas lamas fosse construído. Surgiu antes das mágoas, dos sentidos e das mentiras, antes dos segredos e do poder misterioso da marca azul, das águas sagradas que humedeceram a própria lama que as criou. Tu, eu e o tempo fazemos parte dessa lama. As histórias, o imenso vazio que tudo separa e tudo une são parte dessa lama. As luzes das estrelas, as galáxias distantes, os segredos que se guardam no coração das pedras, os que se comunicaram aos grous e que se perpetuaram por todos os seres vivos do teu planeta, fazem parte dessa lama. A cor viva que povoa o chão sagrado e branco onde meditas, as flores que desabrocharam com o ameno calor do sol deste Verão, o Verão, o calor, as minhas palavras que surgem distantes e acolhedoras, a nossa morada na lua, a própria lua e o espaço que a separa da Terra, a Terra, o voo de todos os insectos, os alimentos, a morte e a vida, tudo faz parte dessa lama criada para tudo construir. Continua a obedecer à sagrada marca azul que te confiei pois nada mais importa. Ensinaste e foste ensinado. Cresceste e ajudaste a crescer, descobriste e ajudaste e construir. Aprendeste com as histórias e ensinaste as histórias aprendidas. Já não és quem foste e ainda não és quem serás. E o milagre desta evidência é que a tua história só agora começou”.

Abri os olhos.

Ao meu redor o branco tinha-se transformado num jardim de tonalidades violetas e lilases. Um pequeno círculo de neve branca e pura é tudo o que resta das eternas neves brancas que vestiam o cume majestoso do Kanchenjunga onde medito.

Abri as asas.

Olha as nuvens que agora pintam o outrora azul do céu.

O sol ilumina-as e dificilmente consigo imaginar que foi criado da mesma lama que me dá existência, que deu existência às nuvens e à montanha e à neve e aos desejos.

Escuto os distantes bandos de grous que viajam em direcção ao Oeste quando um violento ciclone fez desaparecer todas as flores que vestiam o cume majestoso.

Dei conta que o ciclone foi provocado pelo bater das minhas asas poderosas

Este é o momento de viajar.


Escuto as aves viajantes

As florestas milenares

E o vento e as brisas que as penteiam


É isso que acontece quando morremos

Transformamo-nos na lama primeira

A mesma de que tu, eu e o tempo faziam parte

E as flores violetas do jardim de Kanchenjunga

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