domingo, 4 de setembro de 2011

MOMENTOS 35


4 de Setembro de 2011


O regresso ao que já fomos.

A viagem trouxe-nos ao mesmo local de onde partimos, ao mesmo momento, aqui no centro caótico do Ardh Khumb Mela. Regressámos diferentes do que já fomos. A viagem trouxe-nos de volta enriquecidos com todas as histórias. O grande rio sagrado fervilha de vida e está mudado. Pensei que não voltaria a vê-lo, e ele que se encontra espalhado um pouco por toda a parte.

Acordei de um longo sono e tudo se move vagarosamente, de uma maneira quase gentil. Até o tempo se espreguiça não querendo sacrificar as sombras deste início de manhã. Não voltaremos a ser o grande rio sagrado até morrermos. Outra vida e talvez, quem saiba, o apelo surja de novo e o corpo possa regressar à sua líquida forma, pura e cristalina, das nascentes geladas do planalto de Gomukh. O corpo encontra-se dormente. As misteriosas palavras com que se construiu a primeira de todas as histórias fazem agora parte de quem sou. Deixei-as entrar depois de descobertas ao longo do trajecto realizado enquanto peregrino improvável, herdeiro da poderosa marca azul oferecida pela mais bela das princesas.

Aos poucos volto a recordar o ritmo do bater do coração e acompanho as melodias e os cânticos da multidão. Recordo os odores intensos que regressam invisíveis como a neblina deste novo dia que acaba de nascer.

O tempo recusa-se a avançar e agradeço.

Este é o tempo de meditar.

Tudo nestas vidas mudou, porque eu mudei. O poder da marca azul estava somente adormecido, como nós, e dar-lhe uso agora era fundamental.

Quero observar por vários dias o nascer desta manhã. Serei egoísta o suficiente para fazer parar o tempo agora, no instante em que todos se deslocam para a confluência sagrada dos irmãos Ganges e Yamuna. Este momento único e irrepetível por séculos e séculos que nos sucederão, não pode ser observado nas poucas horas que fabricam este dia.

O mesmo tempo que me levou trouxe-me de volta.

O mesmo tempo que me transformou desejou fazer de mim o rio sagrado, a mãe-montanha, a floresta, o fogo e o gelo, as garças e os grous de pescoço e cabeça negras.

O mesmo tempo que me derrotou, colocou-me no caminho da primeira história e fez de mim um vencedor.

O mesmo tempo que me abandonou e se esqueceu de mim na subida ao topo do Kangenchunga, fez desabrochar flores violetas que me ajudaram a escutar as florestas milenares, o vento e as brisas que as penteiam.

O mesmo tempo que encontrou o rapaz órfão criado na maior das lixeiras de Allahabad, transformou-o no viajante azul de asas imortais, capaz de se fazer transportar até as mais distantes paragens, capaz de se sentir o mais importante dos peregrinos.

O mesmo tempo que avança incólume, inabalável e imperturbável desde que foi criado das primeiras lamas antes do espaço onde tudo corre e se espreguiça, veio adormecer ao meu colo, colocar-se ao serviço da força improvável que me foi doada pela menina princesa do Ganges.

O mesmo tempo que me diz baixinho para eu não ter receio de envelhecer, é o mesmo que se ri alegremente sempre que utilizo o poder da sagrada marca azul, fazendo-o parar.

- Tu e eu somos irmãos, Larniki. É com orgulho que vejo o quanto cresceste desde o início desta jornada. Repara como estes milhões de peregrinos acreditam, sentem neles uma fé inabalável que os move assim desde que se conhecem as primeiras histórias. Eles fazem parte integrante dessas primeiras histórias, até da primeira. Sentem nas suas entranhas a mesma força que até aqui trouxe os seus avós a primeira vez. Serão assim tão diferentes de nós? Gostas de me fazer parar, de aproveitar o teu poder para me fazer recuar um pouco ou mesmo fazer-me voltar muitos anos atrás na minha peregrinação. É isso que nos faz ser tão parecidos, somos ambos viajantes criados antes de tudo, retirados das primeiras lamas que nos deram existência. Preferiste manter-te do lado mais azulado da viagem. Ganhaste humanas formas. Essa construção permitiu-te sonhar como mais nenhuma outra das que foram depois de nós criadas e viajaste como ninguém. Foste o sal, o pequeno átomo, a luz das estrelas e a escuridão dos buracos-negros. Foste planeta perdido, cometa, semente, quasar, e foste, tal como eu, um tempo que existiu paralelo a mim, como um gémeo que procura seguir a própria sombra. Foste os anéis de milhares de planetas, foste a energia que os manteve equilibrados, vivos, aquecidos. Foste a vontade que fez com que tudo voltasse novamente ao seu início para que agora, neste momento, possas ser o jovem Larniki que me parou.

O mesmo tempo que se manteve em silêncio, ocupado com a sua vil tarefa de tudo envelhecer, é o mesmo que me diz agora ser meu irmão e me dá conta desta verdade guardada nas pedras geladas da lagoa de Gomukh. Se ele o sabia é porque é, de facto, meu irmão.

O mesmo tempo que me acompanha, que se derrete invisível à volta de tudo o que tem existência, é o mesmo que aguardou todo este tempo para mo dizer.

Agora que o parei para observar com a devida atenção e clareza o Ardh Khumb Mela, resolveu comunicar-me parte da história primeira.

Olho para estes peregrinos que acreditam, que confiam, que apenas desejavam estar aqui hoje nesta ímpar comunhão. Só agora, depois da primeira parte da viagem, eu acredito.

Acredito no tempo, nas pessoas, nas histórias que as construíram, no que significam e no que somos. Acredito no amor, na força única e indestrutível da sagrada marca azul. Acredito no Ganges, acredito em todas as preces de todos os peregrinos que o visitaram, visitam e visitarão. Acredito na protecção e no amor da menina princesa do Ganges, no seu sorriso, no calor da sua pele e dos seus beijos. Acredito em meu irmão pois ele sou eu e eu sou o tempo. Acredito neste momento, no aqui e agora como a única verdade eterna e indestrutível. Acredito que este Ardh Khumb Mela será irrepetível pois foi nele que aprendi a ser o Ganges e nele me transformei, nele me revigorei e quase desapareci. Acredito em ti, minha princesa, meu amor, e na nossa secreta morada lunar onde nos amamos. Acredito que regressaremos ao que já fomos, tal como agora, tal como depois desta minha peregrinação.

Agora vejo, respiro e medito.

Estes que aqui se banham e vieram comungar são meus irmãos, como o tempo, como o Ganges e o Yamuna. São parte da minha família de quem não conheço pai e mãe.

O mesmo tempo que se manteve em silêncio continua parado e a sorrir. Sabe que agora eu acredito. Sabe que, mais dia, menos dia, o vou deixar continuar a avançar. Sabe que eu sei que os peregrinos me empurrarão e arrastarão para o rio sagrado que está pronto para me receber tal como às luzes e aos desejos.

Este é o tempo de libertar o tempo.

Este é o tempo de deixar que o corpo seja arrastado pelos anciões para as águas do grande rio sagrado.

Depois será anunciado um renascimento purificador que nos colocará, novamente, um em frente ao outro pela primeira vez.


FIM


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